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'DAU. Natasha' se destaca no Festival de Berlim com cenas de sexo e tortura

Cena do filme russo "Dau. Natasha" - Copyright Phenomen Film
Cena do filme russo 'Dau. Natasha' Imagem: Copyright Phenomen Film

Mariane Morisawa

Colaboração para o UOL, em Berlim

26/02/2020 19h04

Existem cineastas ambiciosos - e existe Ilya Khrzhanovskiy. O cineasta russo colocou fogo na competição do 70º Festival de Berlim, que até aqui andava morna, com seu "DAU. Natasha", dirigido em parceria com Jekaterina Oertel e que gerou debates quentes sobre suas cenas fortes e controvérsias fora da tela.

Junto com "DAU. Degeneration", exibido em sessão especial, fora de competição, "DAU. Natasha" é o primeiro fruto cinematográfico do Projeto DAU, iniciado em 2007 - houve uma instalação em Paris no ano passado.

A proposta era fazer um filme recriando a sociedade sob o totalitarismo da União Soviética entre 1938 e 1968. Logo, virou uma empreitada multidisciplinar, envolvendo cinema, performance, ciência e experimento social. Khrzhanovskiy construiu um cenário gigante, com 12 mil metros quadrados, do Instituto de Pesquisa em Física e Tecnologia, em Kharkiv, na Ucrânia. Cientistas de verdade ocuparam o set, fazendo experiências. Artistas como Marina Abramovic e Carsten Höller visitaram o instituto.

Durante 40 meses, foram 180 dias de filmagem, com 400 papeis principais e 10 mil figurantes no total, recrutados na cidade. Eles foram convidados a viver e trabalhar naquele espaço, usando roupas, incluindo a lingerie, objetos, linguagem e comida disponíveis na época. Tudo no improviso.

Na coletiva de imprensa, o diretor russo também explicou um pouco o projeto. "É um mundo intermediário entre duas realidades. Nesse set, criamos um período diferente. Os passos que os atores tomaram tornaram-se realidade, apesar de as circunstâncias serem diferentes da União Soviética. A violência foi real, mas não igual. No mundo real, você paga de verdade."

"DAU. Natasha" foca no refeitório onde trabalham a personagem do título (Natasha Berezhnaya) e a jovem Olga (Olga Shkabarnya). As duas atendem os cientistas do instituto, como Luc (Luc Bige) e o Professor Blinov (Alexey Blinov). Os dias ocupados são seguidos por noites em que se regalam com caviar e champanhe, embebedando-se seguidamente. As cenas são bem longas e na maioria repetitivas, mostrando os efeitos cotidianos de viver numa sociedade totalitária - a bebida serve para tirar a cabeça da opressão, e a violência do Estado acaba se transferindo para o convívio.

Não faltam cenas em que Natasha e Olga, embriagadas, discutem, se xingam e até se estapeiam. Também há uma cena de sexo explícito e outra de tortura — Natasha é chamada pela KGB para delatar uma pessoa, prática comum na União Soviética.

"Só vou dizer que todo o mundo acredita no que viu no filme. Temos um diretor fantástico, um diretor de fotografia maravilhoso e tremendos atores", disse Natasha Berezhnaya ao ser indagada sobre as cenas de sexo e nudez.

Mas a controvérsia atingiu o projeto muito antes da chegada a Berlim. Os produtores foram acusados de assédio moral. Khrzhanovskiy negou e colocou a culpa no sistema. "Esses acusadores nunca têm nome. É uma velha prática soviética", disse ele, que quis fazer "DAU" para falar do totalitarismo ainda presente na sociedade russa, governada por Vladimir Putin desde 1999.

"Eu não ligo para isso. Esse projeto durou muito tempo, muita gente trabalhou nele. Foi construído por nós todos juntos. Por causa da situação criada pelo filme, a equipe inteira precisava manter a atmosfera, era parte do filme. Claro que nas entrevistas com os candidatos falamos de violência, sexo, morte, não tinha como não falar. Mas quem estava trabalhando nos filmes ficava separado do resto." O diretor também negou que o anonimato das vítimas se deva à assinatura de termos de confidencialidade. "O NDA (sigla em inglês) se referia ao trabalho em si, não à vida das pessoas."

O filme está proibido na Rússia, onde foi classificado pelo Ministério da Cultura como propaganda pornográfica. "Eu reclamei, e eles disseram que não iam ouvir ninguém, que era para eu levar à corte. E eu fiz exatamente isso. Agora a corte mais justa do mundo vai julgar o caso, suponho", disse, em tom irônico.

Numa época em que se tem cada vez mais cuidado com o tratamento de atrizes no set e a maneira como as mulheres são retratadas, "DAU. Natasha" incomoda ao colocar Berezhnaya em posição vulnerável, especialmente na cena de tortura. Mas não dá para negar que sua ambição de ser uma espécie de "Show de Truman" é fascinante.