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Cinebiografia mostra como Hebe foi perseguida na TV e desafiou a ditadura

Divulgação/Warner Bros. Pictures.
Imagem: Divulgação/Warner Bros. Pictures.

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, em Gramado (RS)

26/08/2019 12h00

"A censura acabou ou não, no Brasil?", indaga Hebe Camargo diante das tentativas do governo federal de controlar o que apresentadora diz e faz em seu cada vez mais popular programa de televisão. O impasse, que motivou sua saída da Rede Bandeirantes, em meados dos anos 1980, para ser acolhida, logo em seguida, pelo SBT de Silvio Santos, abre a narrativa de Hebe - A Estrela do Brasil, cinebiografia da artista, que fez sua estreia na competição do 47º Festival de Gramado.

O filme, que chega ao circuito brasileiro no dia 26 de setembro, ecoa, nos dias de hoje, um período histórico ainda marcado por resquícios da ditadura militar (1964-1985). Apesar da mudança de emissora, que lhe garantiu o desejo de continuar fazendo seu programa ao vivo, Hebe continuou sendo perseguida e contestada por sua postura crítica e irreverência.

Assista ao trailer de Hebe - A Estrela do Brasil

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"A Hebe sofreu mais de 90 processos. O deputado Ulysses Guimarães falou que ia cassar o programa dela por considerá-lo inadmissível em uma democracia. Você consegue imaginar o Ulysses Guimarães, um ícone do nosso pensamento democrático falando uma coisa dessas? Ele falou, em pleno Congresso Nacional, que Hebe estava achincalhando os deputados Constituintes", lembrou Maurício Farias, diretor do filme, no encontro com a imprensa na tarde desta quinta-feira (22).

"A briga com a censura foi ideológica, a água chegou e bateu na canela dela. Era como ela dissesse: 'Meu programa não, quero falar o que quero'. Foi quando ela entendeu que a ditadura não era legal, era alguém querendo controlar o que ela poderia dizer", explicou a roteirista Carolina Kotscho, coautora de filmes como 2 Filhos de Francisco: A História de Zezé di Camargo e Luciano (2005) e Flores Raras (2013).

O roteiro de Hebe - A Estrela do Brasil é resultado de um mergulho em extenso material de pesquisa, que inclui mais de três mil recortes de jornal, documentários e livros sobre a artista. "Eu me apaixonei tanto pelas qualidades quanto pelos defeitos da Hebe. A partir disso a gente entende a força dela. Ela é prova de que defender o que é certo não é uma questão ideológica, é uma questão de caráter. É uma pessoa capaz de mudar de opinião, que está ali para ouvir, e faz perguntas sem nenhum tipo de preconceito", disse Carolina.

Andréa Beltrão no longa Hebe - A Estrela do Brasil - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

No filme, Hebe é interpretada por Andrea Beltrão, mulher do diretor. A atriz, reduziu sua permanência em Gramado à noite de apresentação do filme no festival, em razão de seus compromissos com a temporada da peça Antígona no Rio de Janeiro. Em desempenho aplaudido pelo público, Andrea evita a imitação pura e simples de gestos e da voz da apresentadora. Mas algumas expressões de seu vocabulário ("gracinha") estão lá para garantir o contato com a biografada.

"É comum, em cinebiografias, que as pessoas tendam a buscar as semelhanças entre o ator e o personagem que ele interpreta. O convite para a Andrea fazer a Hebe partiu da própria Carol Kotscho, a roteirista. Entendi que não deveríamos fazer com que os atores fossem os mais parecidos possíveis com os personagens reais. Achava que isso desmontaria o filme, ao invés de transportá-lo para um lugar interessante. Soaria superficial, uma visão quase caricata, porque Andrea jamais iria parecer como a Hebe, e nenhum outro ator com o seu personagem".

A carreira de Hebe começou ainda nos anos 1940, no rádio. Mas a ação do filme concentra-se na segunda metade dos anos 1980, nos primeiros anos de redemocratização do país. "Para mim, esse é um momento em que a gente melhor se conecta com a Hebe. É um momento de explosão, de transformação, quando ela deixa de ser uma boneca no palco. É o momento em que ela não se contém mais e entende a responsabilidade de ser uma mulher com um microfone na mão e o desafio que era isso naquele momento", explicou Carol.

Diretor Maurício Farias no festival de cinema de Gramado - Cleiton Thiele/Agência Pressphoto - Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Maurício Farias, diretor da cinebiografia, em Gramado
Imagem: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

As reações de certos setores da sociedade ao comportamento de Hebe à época constroem um curioso paralelo com a realidade de hoje. Em seu programa, ela defendia os excluídos sociais e causas de minorias, como a dos gays. Recebia em seu sofá figuras controversas no período, como a transexual Roberta Close e a atriz e humorista Dercy Gonçalves - o filme chega a reproduzir o episódio em que ela exibiu os seios para a plateia.

"Quando comecei a escrever o roteiro, anos atrás, o filme tinha um sentido de celebração da figura da Hebe Camargo. Mas ai veio o movimento #Metoo, o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O mundo mudou muito de lá para cá, e o filme ficou mais atual, ganhou uma outra dimensão, uma outra importância", observou Carol.

Para além de recriar os bastidores de seu popular show de TV, no qual recebia personalidades de diversos calibres, o filme explora as contradições da protagonista. Hebe era capaz de defender com unhas e dentes o político e empresário Paulo Maluf, de quem era amiga, e abrir espaço em seu programa para excluídos e temas progressistas. A apresentadora foi a primeira personalidade televisiva a falar publicamente sobre a Aids.

Carolina Kotscho, Andréa Beltrão e Maurício Farias em Gramado - Edison Vara/Agência Pressphoto - Edison Vara/Agência Pressphoto
Carolina Kotscho, Andréa Beltrão e Maurício Farias em Gramado
Imagem: Edison Vara/Agência Pressphoto

"Uma das grandes lições que a Hebe deixou para o filme é que ela era uma mulher de diálogo", explicou o diretor. "Ela passou a vida fazendo entrevistas, e recebia em seu sofá do (cartunista) Henfil ao (deputado) Paulo Maluf, da travesti ao general. Ou seja, ela se propunha ao diálogo, conversar com o outro, aprender e não tinha vergonha de mudar de opinião ou posição. E ela terminou aplaudida de pé no programa Roda Viva, onde enfrentou as perguntas mais preconceituosas".

Maurício confessou que tinha uma visão superficial sobre o trabalho e a personalidade da artista. "Sou do Rio de Janeiro, não assistia o SBT. Conhecia a Hebe de uma maneira muito superficial, que era uma grande apresentadora, que as pessoas tinham um carinho enorme por ela, mas que era uma pessoa muito conservadora, então a viam com um certo preconceito. Tive o privilégio de fazer esse trabalho com a Carol, e poder me aproximar da Hebe e conhecer mais sobre ela, seu trabalho e sua família. Descobri uma pessoa mais sensível, intensa, de história incrível, completamente diferente de minha visão simplista".

Maurício e Carolina agora preparam uma série sobre a apresentadora, que chegará às telas da Globo no ano que vem. "Será um produto completamente diferente do filme", avisa Carolina.

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