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Sônia Braga: "Estou de saco cheio de ter de ficar contornando a verdade"

Edison Vara/Agência Pressphoto
Imagem: Edison Vara/Agência Pressphoto

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, em Gramado (RS)

20/08/2019 04h00

Há uma sequência em Bacurau em que Domingas, personagem interpretada por Sonia Braga, dispara, aos berros, uma série de impropérios em pleno velório de Carmelita, a amiga recém-falecida. O desabafo emocionado, com o qual não poupa nem a morta querida ("bruxa!", "rameira!") sintetiza a natureza da personagem na trama criada por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que chega aos cinemas brasileiros dia 29.

No filme, Domingas é uma mulher sem papas na língua, uma das moradoras mais antigas do vilarejo encravado no sertão pernambucano, assombrado por tentativas de tirá-lo do mapa. Por ser a única médica da região, também conhece muitos segredos dos moradores do povoado.

"Ela não tem filtros; é uma pessoa que chega e fala tudo o que pensa. Gostaria que as pessoas se inspirassem em Domingas. Estou de saco cheio de ter de ficar contornando a verdade", desabafou a atriz brasileira (radicada nos Estados Unidos) ao UOL durante o 47º Festival de Gramado (RS), onde Bacurau abriu a maratona gaúcha na última sexta-feira (16).

"A Domingas é uma personagem região, é uma mulher quase da terra, pertence àquela região. Ela é quase uma rocha, um cacto naquela paisagem. Ela é médica e deve ser a parteira da cidade também, cuida das putas... é uma pessoa ligada à comunidade de uma maneira muito visceral, mesmo", descreve Sonia, 69 anos, que surge em cena com longos cabelos descoloridos. "Usamos um pouco de maquiagem porque precisávamos envelhecer a personagem um pouquinho".

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Bacurau marca a segunda parceria da atriz paranaense com Mendonça Filho. Os dois trabalharam juntos pela primeira vez em Aquarius (2016), no qual Sonia interpreta outra mulher destemida, Clara, jornalista aposentada que luta contra a especulação imobiliária. "Continua braba", brinca a atriz. "Tenho um amigo americano, que dá aulas de inglês, que criou o verbo 'itamaratiar', para aplicar a situações em que exigem que sejamos mais diplomáticos. A todo momento parece que sou do Itamaraty".

A Domingas de Bacurau está a anos-luz à frente do comportamento de outros personagens icônicos de Sônia, como a meiga Ana Maria, da série infantil Vila Sésamo (1972), ou mesmo a doce e sensual Gabriela, personagem-título da novela de Walter George Durst, a partir do romance de Jorge Amado, que foi ao ar em 1975.

"Quando fiz Gabriela, minha esperança foi que as mulheres brasileiras andassem descalças, de cabelos soltos e usando vestidinhos de chita, como a personagem da novela. Quando descobri Gabriela eu me vi nela, percebi que era hippie antes de o estilo hippie ser uma moda", conta a atriz, que encontrou na personagem um espelho de seu temperamento desinibido e aberto.

"Antes de 'Gabriela', eu só fazia personagens de branquelas neuróticas, meninas que falavam esquisito", explicou a atriz, que participou da primeira montagem brasileira do musical Hair, sucesso da Broadway, em 1969. "Sempre fui muito branca. Arduíno Colasanti (1936-2014), quem eu namorava na época, começou a me levar para passeios de barco. Voltei morena e molinha, pronta para encarnar Gabriela".

Sônia Braga durante coletiva do filme Bacurau no Festival de Gramado - Cleiton Thiele/Agência Pressphoto - Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Imagem: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

O convite para Gabriela foi aceito sob uma única condição: não usar maquiagem. Para Sonia, quanto menos artifícios, melhor. "Fiz um filme com o John Frankenheimer chamado Amazônia em Chamas (1994), sobre o Chico Mendes, que foi interpretado por Raul Julia, que foi rodado no meio da selva tropical mexicana. Eu interpretava uma jornalista. Sentava para fazer a maquiagem, que levava duas horas para ficar pronta. Saía do camarim e a maquiagem caía do rosto. Virei para o John e disse: 'Posso fazer um pedido? Não usar maquiagem, pelo amor de deus?'. Ele respondeu: 'Por isso que gosto de você' (imitando uma voz profunda)", recorda a atriz.

A agenda de Sônia continua cheia de projetos internacionais. Ainda em 2020 chega às telas a comédia The Jesus Rolls, dirigido pelo ator americano John Turturro, um spin off de O Grande Lebowski (1998), dos irmãos Joel e Ethan Coen, no qual divide os créditos do elenco com Susan Sarandon e Audrey Tautou. Em breve também poderemos vê-la em Fatima, do italiano Marco Pontecorvo, drama histórico sobre as três crianças visitadas por Nossa Senhora em uma aldeia portuguesa, no início do século passado, no qual Sônia interpreta uma freira.

Uma possível volta à televisão brasileira - e a uma temporada mais longa no Brasil - continuam sendo adiadas: Sônia avisa que o convite para participar de Vanity Fair, a nova novela de Gilberto Braga, programada para ir ao ar em 2020 na Globo, é apenas um boato. "O convite não existe. Eles sempre fazem isso. Primeiro eles me convidam, mas pela imprensa. Depois eles dizem que não aceitei porque sou muito cara. Não é a primeira vez que algo parecido acontece."

Veja cena com Sônia Braga em Bacurau

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