Topo

O dia em que Serguei me recebeu de cuecas e disse que se casaria com o Fiuk

Com o Serguei em sua casa, o Templo do Rock, em Saquarema - Arquivo Pessoal
Com o Serguei em sua casa, o Templo do Rock, em Saquarema Imagem: Arquivo Pessoal

Felipe Branco Cruz

Do UOL, em São Paulo

08/06/2019 04h00

O rock brasileiro perdeu ontem Serguei, o "Divino do Rock", que morreu aos 85 anos, em Volta Redonda, no Sul Fluminense. Conheci essa figura no dia 26 de dezembro de 2014 quando ele me recebeu em sua casa, em Saquarema, vestindo apenas cueca e uma camiseta dos Rolling Stones.

Minha visita ao Templo do Rock foi totalmente inesperada e feita sem nenhum planejamento. Eu estava com minha mulher dirigindo para Cabo Frio, de folga para o Réveillon, quando vi a placa para Saquarema. Sabia que Serguei morava lá e desviei o meu caminho. Vai que ele estava em casa e conversava comigo?

Precisava, no entanto, de um motivo para incomodá-lo um dia depois do Natal. Por isso, mandei uma mensagem para meu chefe no UOL perguntando se ele tinha interesse em uma entrevista. "Serguei sempre rende boas histórias", foi a resposta. Pronto. Agora eu tinha a desculpa perfeita para encontrá-lo.

Realmente, boas histórias sobre Serguei nunca faltaram. Mais conhecido pelo folclore ao seu redor do que propriamente por sua produção musical, ele foi redescoberto por Jô Soares, na década de 1980, quando chamou atenção ao explicar ao entrevistador que era adepto do "pansexualismo" que, segundo ele, significava ter relações sexuais com qualquer criatura ou objeto.

O cantor contava também casos tão saborosos quanto inacreditáveis, como o fato de ter tocado guitarra com Jimi Hendrix e transado com Janis Joplin nos loucos anos 1970. "Tenho as fotos para comprovar", me disse o cantor enquanto apontava para uma parede de sua casa repleta de fotografias. Uma delas o mostrava ao lado de Hendix e a outra beijando Joplin na boca. "Lembro quando ela veio no Rio de Janeiro e namoramos juntos em um canto escondido do Leme com um marinheiro holandês". Joplin tinha 25 anos e Serguei, 35.

Fiuk, o cachorro

Encontrar a casa de Serguei, no bairro de Itaúna, em Saquarema não foi difícil. Qualquer pessoa na cidade sabia dizer onde ele morava. Além disso, em frente à sua casa estava estacionado um imenso motorhome, totalmente adesivado com fotos do cantor. Difícil mesmo foi acordá-lo.

Cheguei lá por volta das 9h30 sem avisar e toquei a campainha. Não tinha certeza se ele estaria em casa. Tinha lido que o Templo do Rock funcionava das 9h às 17h e resolvi arriscar. Depois de uns 10 minutos, Serguei surgiu no portão de cuecas, usando apenas uma camiseta dos Rolling Stones, perguntando quem era. Quando disse que era jornalista e queria entrevistá-lo, ele me convidou para entrar e tomar um café.

"Bicho! Que horas são? Acabei de acordar. Senta aí um pouquinho, que eu vou fazer um café para você", disse ele, que em seguida foi à cozinha e preparou o café, servido em uma caneca dos Beatles... - Veja mais em https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2015/01/08/vida-psicodelica-do-roqueiro-serguei-pode-dar-origem-a-tres-filmes.htm#fotoNav=6?cmpid=copiaecola

5.jan.2015 - Serguei acaricia seu cachorro Fiuk, nome dado em homenagem ao filho de Fábio Jr. - Felipe Branco Cruz/UOL - Felipe Branco Cruz/UOL
Serguei acaricia seu cachorro Fiuk
Imagem: Felipe Branco Cruz/UOL
"Bicho! Que horas são? Acabei de acordar. Senta aí um pouquinho, que vou me vestir e fazer um café para você", disse ele, que em seguida foi à cozinha e me serviu a bebida em uma caneca dos Beatles.

Serguei agora vestia uma calça psicodélica e sentamos na varanda, de frente para o jardim, repleto de bandeiras de bandas de rock, acompanhados por quatro cachorros vira-latas. Um deles, de pelos claros e com dois anos de idade, se chamava Fiuk em homenagem ao filho de Fábio Jr.

"O [cão] Fiuk é uma graça, é lindo. É igual ao garoto. Eu pediria licença ao pai dele e lhe daria uma aliança. Como eu não tenho o Fiuk original, eu fico com o meu. Peguei para criar quando tinha quatro meses", disse.

O cantor elogiou também o ator Eriberto Leão, que havia interpretado em 2013 o cantor Jim Morrison na peça teatral "Jim". Na ocasião, Serguei beijou Eriberto na boca em cima do palco, no Rio de Janeiro. "Eu pensei que era o Jim", lembrou.

Templo do Rock

A varanda contava com uma poltrona antiga, onde o cantor gostava de ficar relaxando ouvindo o barulho do mar e seus discos clássicos de rock e vendo os vizinhos passarem na calçada. Enquanto estivemos lá, um dos vizinhos passou do outro lado da rua gritando o nome do cantor. Como resposta, Serguei gritou de volta: "Rock and Roooool".

O jardim, no entanto, era a parte mais bem cuidada da casa. Ao contrário do pomposo nome de Templo do Rock, a casa era velha e simples, com as paredes cheias de teias de aranha e mofo causados pela maresia.

Na sala principal, ele tinha diversos quadros, livros e autógrafos de roqueiros famosos que eram usados para contar a história do rock aos visitantes. "Gosto de contar tudo. Não gosto de visitantes que entram aqui só para 'ver' o museu. Quero ensinar", disse. E ele ensinava mesmo, nos mínimos detalhes.

5.jan.2015 - Motorhome trazido do Texas abriga um camarim e material de apoio para as gravações de uma trilogia sobre Serguei - Felipe Branco Cruz/UOL - Felipe Branco Cruz/UOL
Serguei mostra o Motorhome que abriga um camarim e material de apoio para as gravações de seu filme
Imagem: Felipe Branco Cruz/UOL

Ainda no primeiro andar, ele nos mostrou onde ficava o quarto psicodélico, que não tinha nenhum móvel e era pintando com tintas fosforescentes que emolduravam cartazes de Bob Marley, Jim Morrison e Sublime. No final do corredor, ele mostrou a cama onde dormia, que estava com um lençol de oncinhas. Na cabeceira da cama, ele tinha uma imensa fotografia de Jim Morrison. Ao lado, ficava o banheiro, transformado em uma espécie de camarim.

Na parede do corredor Serguei tinha escrito em letras grandes os números de telefone da sua casa e de seu celular, que ele nunca decorava. "Eu nem uso celular direito", disse.

Da sala era possível subir para o mezanino. Lá em cima, nos fundos, havia uma chaise de casal repleta de almofadas. Na parede do lado direito, ele mantinha um aquário, que certamente já tinha visto dias melhores, com a água meio esverdeada. Por fim, no centro do mezanino, ele tinha uma espécie de fonte decorativa que deveria estar jorrando água, mas estava seca.

Na ocasião da minha visita, eu aproveitei para perguntar sobre o documentário que o cineasta e produtor cultural André Kaveira estava produzindo sobre ele. A expectativa era de que ele estreasse em 2016.

O ator Carlos Loffler, neto do Oscarito (que foi a última pessoa a visitar Serguei no hospital anteontem), tinha sido o escolhido para interpretá-lo nos cinemas. Serguei me mostrou algumas fotos da gravação e nos levou para a rua para conhecermos o motorhome por dentro. "Estamos usando esse caminhão nas filmagens", contou. Na época, Serguei me disse que Loffler cantava melhor do que ele. "Mas eu canto blues melhor do que ele", brincou.

Infelizmente o documentário não saiu.

Como Serguei não teve filhos nem deixou nenhum herdeiro, ele vivia sozinho no local com uma mesada da prefeitura de Saquarema, usada para manter o museu. Mas cuidar daquela casa não era uma tarefa fácil para um senhor de mais de 80 anos. Serguei não aceitava ajuda e por diversas vezes se "esquecia" de fazer compras e ficava sem comer. Por causa disso, foi hospitalizado com anemia diversas vezes, o que deixava os amigos e os fãs aflitos.

Ao mesmo tempo que reclamava que a "velhice era uma merda", Serguei me disse que queria viver até os 100 anos. Mal sabia ele que, depois de 85 anos de muito rock n'roll, reuniu mais histórias que qualquer um de nós.