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"1964: O Brasil Entre Armas e Livros": o que o filme que ameniza ditadura tenta mudar

Estudante foge de policiais em manifestação na Cinelândia, no Rio, em 1968 - Evandro Teixeira/CDoc JB/Folhapress
Estudante foge de policiais em manifestação na Cinelândia, no Rio, em 1968 Imagem: Evandro Teixeira/CDoc JB/Folhapress

Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

05/04/2019 04h00

O documentário "1964: O Brasil Entre Armas e Livros" vem causando polêmica na internet por traçar uma perspectiva alternativa sobre o conturbado período da ditadura militar brasileira. Dirigido por Felipe Varelim e Lucas Ferrugem, do site Brasil Paralelo, o filme defende, entre outros pontos controversos, que havia uma perigosa ameaça comunista e que a censura e a repressão não foram tão severas como contam os livros de história, escritos por pessoas contaminadas por ideais da esquerda.

Para traçar uma nova versão da história, a produção, que é independente e tem apoio de conservadores e do presidente Jair Bolsonaro (PSL), ouviu filósofos, pesquisadores, jornalistas e historiadores, como Olavo de Carvalho, William Waack e Luiz Felipe Pondé. Cercado de controvérsia, o filme foi alvo de protestos esta semana e teve o lançamento cancelado pela rede Cinemark, a maior do país, que se recusou a exibir um filme considerado "mídia partidária".

Os produtores, no entanto, negam que o documentário seja um manifesto pró-ditadura e afirmam que a narrativa é fruto de extensas pesquisas bibliográficas, livres de qualquer sinal de verniz ideológico.

Veja abaixo cinco pontos polêmicos da produção.

Havia ameaça comunista em 1964

A teoria revisionista do documentário bate na tecla de que precisamos analisar os fatos pelo prisma da época, que tinha como pano de fundo as tensões da Guerra Fria. Apresentando documentos obtidos nos arquivos da StB, serviço de inteligência da antiga Tchecoslováquia, o filme defende que a esquerda brasileira orquestrava um golpe sob influência de agentes secretos do país, com o aval da União Soviética.

O presidente deposto João Goulart estaria sendo usado de fantoche pela esquerda ao se aproximar de China e Cuba, com aval do cunhado, o "revolucionário" Leonel Brizola, e do comunista Luiz Carlos Prestes. Segundo o filme, no início dos anos 1960 Prestes se reaproximou do governo soviético para tentar implantar o regime comunista no Brasil, três décadas após o levante da Intentona.

O que diz a história oficial

Segundo a maioria dos historiadores, o governo João Goulart (PTB, mesmo partido de Getúlio Vargas), que tinha diretrizes trabalhistas, não comunistas, esteve bem distante de fomentar uma revolução no Brasil. Na historiografia, a aproximação dele com Cuba, China e países do leste europeu tinha caráter estritamente diplomático, já que o governo era apoiado por parte da esquerda, e não conspiratório.

Na época, o país vivia uma recessão, e elites econômicas e políticas se opuseram às reformas de base propostas por Jango, medidas econômicas e sociais de caráter nacionalista que previam uma maior intervenção do Estado na economia. Os protestos tiveram forte adesão da classe média. Já Luiz Carlos Prestes vivia um limbo na vida política, após ter a prisão decretada em 1958 e, em seguida, revogada via mandado judicial. Seu contato com os soviéticos voltaria a se estreitar apenas em 1971, quando, fugindo da ditadura, se exilou em Moscou com a família.

O general Humberto de Alencar Castelo Branco (à direita), presidente da República, em 1965 - Folhapress  - Folhapress
O general Humberto de Alencar Castelo Branco (à direita), presidente da República, em 1965
Imagem: Folhapress

Militares não queriam assumir o Brasil

Com a crise política e econômica que precedeu o golpe militar [nas entrevistas do documentário, ele é citado tanto como golpe quanto como revolução], o chamado "movimento de 64" foi encabeçado não por militares, mas por civis com apoio de diversos setores da sociedade, incluindo a igreja, a OAB, a imprensa e a população. Os líderes eram, principalmente, governadores de estados insatisfeitos com o governo Jango.

"Os militares foram entrando de pouquinho na coisa. Só que, no final, eles se precipitaram. Eles nem queriam dar o golpe. Foi o [general] Mourão Filho que se precipitou e obrigou os outros generais a entrarem na coisa. Eles estavam quietinhos, e o Mourão Filho que era um doidão botou os tanques na rua e começou a ir para o Rio de Janeiro. Então eles tiveram que se mobilizar", explica Olavo de Carvalho no filme.

O que diz a história oficial

Segundo os livros, militares agiram deliberadamente em todo o processo e, ao lado de políticos e movimentos da ala conservadora, tiveram papel preponderante desde o início da crise instrucional que resultou no golpe. Entre as diversas alas das Forças Armadas havia o entendimento de que a crise do país estava fugindo do controle, e por isso a ordem precisava ser restaurada.

Um exemplo desse envolvimento: menos de uma semana antes da deposição de Goulart, a partir de 25 de março de 1964, uma ampla rebelião de marinheiros, que estavam amotinados no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, no Rio, reivindicando o reconhecimento de sua entidade representativa, serviu como argumento decisivo para a intervenção. Os militares viam na quebra de hierarquia uma consequência do conturbado cenário político.

Relativização da repressão e tortura

"1964" relativiza a repressão policial inferindo que ela não era excessiva. Os produtores admitem ter havido tortura durante o regime militar, mas frisam que ela acontecia de ambos os lados no ambiente de "guerra civil" que instaura no país. O documentário diz que sangrentos grupos de guerrilha, incluindo o VAR-Palmares, de Dilma Rousseff, e a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, deixaram 119 pessoas mortas e que alguns deles já agiam mesmo antes de 1964.

Segundo o texto do filme, "foi nesse ambiente de guerra que psicopatas, torturadores e criminosos de ambos os lados se valiam para praticar suas perversidades em nome de uma causa ou de outra". "A guerra travada por terroristas expandia justificativas para a repressão por parte do Exército. Do outro lado, permitia que o movimento estudantil usasse os mortos em combate para construir a ideia de que a tortura era uma política de estado, fazendo dessa bandeira seu instrumento político e sua publicidade."

O que diz a história oficial

Grupos de luta armada começaram a atuar no Brasil depois de 1964, de forma isolada, e a partir de 1968, e de forma organizada e sistemática, após a instauração do AI-5, Nunca houve, no entanto, uma paridade de forças, métodos e de número de vítimas, como sugere o filme. A ação de guerrilheiros era uma resposta violenta aos militares e seu regime, não o contrário, como argumenta o documentário.

Centros de tortura espalhados pelo país perseguiam opositores e suspeitos, e as torturas se valiam de diversas técnicas militares, na maioria das vezes cometidas por oficiais, por vezes resultando em morte. Também havia torturadores civis, que atuavam sob ordens dos militares. De acordo com o Human Rights Watch (HRW), 20 mil pessoas foram torturadas no período militar. 434 foram mortas ou desapareceram. Em 2014, as próprias forças armadas reconheceram a gravidade da prática, em documento enviado à Comissão Nacional da Verdade.

Oficial faz vigília durante a ditadura militar  - © DR - © DR
Oficial faz vigília durante a ditadura militar
Imagem: © DR

Censura era tímida

Outro ponto controverso: a censura-prévia na arte e nos meios de comunicação, institucionalizada após a promulgação do AI-5, que vedava conteúdos considerados subversivos ou imorais para a sociedade, é descrita como pouco efetiva. O filme advoga que em nenhum momento ela conseguiu impedir que informações realmente relevantes fossem divulgadas nos governos Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979), quando a prática viveu seu apogeu, interferindo em jornais, peças de teatro e músicas.

"É óbvio que houve censura no regime militar, mas era uma censura muito pouco profissional. Se botava um guardinha qualquer, de esquina, e até senhoras para fazer censura. Censuravam besteiras. Pornografia", diz o jornalista Lucas Berlanza. "Eles botavam um censor para cada Redação. Por exemplo, no "Estadão" o censor nem entrava na redação. Os Mesquitas [família dona do jornal] não deixavam. Deixavam ele na portaria. De vez em quando ele cortava matéria. Matéria ficava duas, três semanas proibidas. Depois passava a atualidade da coisa e podia publicar", pondera Olavo de Carvalho.

O que diz a história oficial

A partir do AI-5, todo e qualquer veículo de comunicação deveria ter a sua pauta previamente aprovada e sujeita a inspeção local por agentes autorizados, ferindo o direito de liberdade de imprensa e de expressão. Notícias sobre violência e confrontos com policiais, por exemplo, eram limadas de jornais, revistas, rádio e TVs, assim como casos de tortura que já eram conhecidos na época e ganharam repercussão inédita após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.

No campo das artes, por justificativas que iam da supervisão à afronta aos "bons costumes", diversos nomes importantes da história da música brasileira tiveram obras censuradas. Toda obra era potencialmente suspeita. Na música, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Raul Seixas, Jorge Ben Jor, Rita Lee, Adoniran Barbosa, entre muitos outros, tiveram músicas barradas. No cinema, filmes como "Laranja Mecânica", "Último Tango em Paris", "Iracema", "O Bandido da Luz Vermelha", "Pra Frente, Brasil" não puderam ser lançados na época. O teatro e literatura também eram perseguidos.

Comício para a campanha Diretas-Já, no dia 25 de janeiro de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress - Renato dos Anjos/Folhapress
Comício da campanha Diretas Já na praça da Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro de 1984
Imagem: Renato dos Anjos/Folhapress

Diretas Já não foi movimento orgânico

Um dos símbolos da abertura democrática que já estava em curso nos anos 1980, o movimento que pedia a volta das eleições gerais para presidente do Brasil é contestado no filme, que dá a entender que a forte adesão popular teve motivos que iam além da mera oposição à ditadura. Conforme afirma o historiador Thomas Giulliano no filme, o Diretas só "foi possível porque o povo estava sentindo a inflação. Se não fosse por isso, a camada de classe média brasileira continuaria apoiando o período militar".

O que diz a história oficial

A situação econômica de fato influenciou na eclosão das Diretas Já e de seus comícios, que aconteceram entre 1983 e 1984 em diversas partes do país unindo políticos, celebridades e pessoas comuns, de diversas orientações ideológicas. Mas, segundo a história, a teoria da crise econômica não se sustenta, pelo menos num segundo momento.

Em 1983, ano em que o movimento teve início, o Brasil de fato vivia uma forte crise, com PIB recuando 3,4%, com média mensal de inflação de 11% (IPC). No ano seguinte, no entanto, quando os protestos de fato ganharam, o país viveu um respiro, com a economia crescendo 5,27% e a inflação batendo 16% por mês. O índice só sairia de controle a partir de 1985, após a Emenda Constitucional Dante de Oliveira ser barrada no Congresso e os protestos, cessarem.

Errata: este conteúdo foi atualizado
João Goulart era cunhado de Leonel Brizola, e não genro, como informado na primeira versão do texto. A informação foi corrigida