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Primeira super-heroína trans da TV, Nicole Maines já lutava por referências

Nicole Maines, primeira atriz trans a viver uma super-heroína trans na TV - Rich Polk/Getty Images
Nicole Maines, primeira atriz trans a viver uma super-heroína trans na TV
Imagem: Rich Polk/Getty Images

Osmar Portilho

Colaboração para o UOL

24/07/2018 04h00

Ingênuo é pouco para quem pensa que os filmes e séries de super-heróis são restritamente produtos inofensivos de entretenimento. Além de tomar para si a parte mais polpuda dos lucros de Hollywood, a fatia mais progressista da indústria tem usado de forma muito sábia esse espaço para dar voz para segmentos sociais que antes eram excluídos do grande público. E essa voz acabou de ficar ainda mais alta.

A quarta temporada da série "Supergirl" fará história na TV americana ao mostrar a primeira super-heroína transgênera da televisão. E a missão de interpretar Nia Nal, a heroína Dreamer, ficou com a atriz trans Nicole Maines, famosa por ser forte ativista em defesa das causas há muito tempo.

Nicole Amber Maines nasceu em 7 de outubro de 1997 como menino e se descobriu transgênero aos três anos de idade, quando deixou de ser Wyatt. Ela tem um irmão gêmeo idêntico, Jonas. Ambos foram adotados por Kelly e Wayne Maines, um casal conservador de classe média de Maine, nos Estados Unidos.

Jonas e Nicole Maines - Reprodução - Reprodução
Jonas e Nicole Maines são gêmeos idênticos
Imagem: Reprodução

"Quando vou virar menina?"

Aos 2 anos de idade, os questionamentos de Wyatt eram sempre os mesmos: "Quando vou virar menina?" ou "Quando meu pênis vai cair?". Foi o começo de uma jornada intensa de dúvidas sobre gênero para os pais então despreparados. Enquanto Kelly tentava ajudar, Wayne se afastava e tentava ignorar a situação.

Foram anos até a aceitação do pais se instalar por completo. "Encare isso, pai, você tem um filho e uma filha", disse Jonas, aos 9.

Quando estavam prestes a iniciar o ensino básico, os irmãos ganharam uma festa para conhecer a vizinhança. Foi quando Wayne se deparou com Wyatt no topo da escada com um vestido rosa escolhido em uma loja de brinquedos e um sorriso de ponta a ponta do rosto.

Capa do livro "Becoming Nicole" - Reprodução - Reprodução
Capa do livro "Becoming Nicole"
Imagem: Reprodução

"Wyatt, você não pode usar isso", bradou o pai, em volume suficiente para silenciar a festa e colocar toda a atenção na criança. Seu sorriso logo foi substituído por uma expressão de confusão e medo.

Com a situação longe de estar apaziguada, Kelly interveio e disse para Wyatt que aquela não era a melhor ocasião para o usar o vestido. "Eu não posso ser eu mesma. Jonas veste o que quiser. Por que eu não posso?", perguntou.

Kelly sabia que era verdade e não estava sendo justa com Wyatt. "Vamos apenas tentar conhecer as pessoas antes", disse a mãe.

A cena é um dos relatos presentes no livro "Becoming Nicole: The Transformation of an American Family" (Tornando-se Nicole: A Transformação de uma Família Americana, em tradução livre), escrito por Amy Ellis Nutt, jornalista do "Washington Post", que mostra a falta de preparo dos pais para lidar em uma situação como esta.

"Quando a deixamos sair de vestido e a vi totalmente reluzente de felicidade, eu percebi que tinha que mudar quem eu era", disse Wayne, com lágrimas nos olhos, em entrevista ao programa "Nightline", da ABC, em 2015.

Inspiração: a personagem Nicole (Alexa Nikola) da série "Zoey 101", da Nickelodeon - Reprodução - Reprodução
Inspiração: a personagem Nicole (Alexa Nikola) da série "Zoey 101", da Nickelodeon
Imagem: Reprodução

Por que Nicole?

Era o momento de Wyatt ficar para trás. Mas como ela chegou ao nome Nicole? "Eu decidi provavelmente na quarta série. Comecei a procurar por personagens da TV que eu adorava e poderiam se parecer comigo. E aí decidi por Nicole".

E a personagem que deu a inspiração era Nicole de Zoey 101, do canal Nickelodeon. "Ela era divertida e desengonçada. Ela é parecida comigo. Eu sou Nicole", afirmou.

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A primeira batalha

O ativismo nasceu cedo dentro de Nicole, ainda na escola, por causa de um direito básico e fundamental: ir ao banheiro. Em 2013, ela foi impedida de frequentar o banheiro feminino após a reclamação do avô de uma de suas colegas. A direção da escola a proibiu de usar a instalação. No lugar, ela deveria usar o banheiro dos funcionários.

A família de Nicole entrou com uma ação na Justiça por sentir que ela havia sido discriminada. Em junho de 2014, a Suprema Corte de Maine concluiu que o distrito escolar havia violado seus direitos humanos. A família Maines recebeu uma indenização de US$ 75 mil e a escola foi proibida de impedir alunos transgêneros de entrar no banheiro com qual se identificassem.

Nicole Maines em painel da San Diego Comic-Con de 2018 - Mike Coppola/Getty Images - Mike Coppola/Getty Images
Nicole Maines em painel da San Diego Comic-Con de 2018
Imagem: Mike Coppola/Getty Images

O caminho óbvio era o ativismo

O papel em "Supergirl" será uma plataforma para Nicole levantar debates, ganhar representatividade e exercer sua influência na mídia. Mas este não é o início de sua jornada, e sim uma etapa de um caminho percorrido desde o episódio do banheiro da escola.

O livro "Becoming Nicole", lançado em 2015, traz uma reunião de crônicas sobre os desafios e adaptações da família durante todo o processo. A publicação entrou na lista dos títulos mais vendidos do "New York Times" e recebeu diversos prêmios.

Naquele mesmo ano, Nicole participou do programa "Royal Pains", no qual falou sobre os perigos sofridos por uma adolescente trans no uso de hormônios. No ano seguinte, foi entrevistada no documentário "The Trans List", da HBO, em que contou histórias pessoais sobre sua batalha, além de dar depoimentos para outros registros em vídeo, como "Not Your Skin".

Please... we’re professionals. . . What an honor it is to be joining this cast! #supergirl #sdcc

Uma publicação compartilhada por Nicole Maines (@nicoleamaines)

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Toda essa representatividade a colocou no holofote de inúmeros programas de TV, no qual fala com orgulho sobre sua trajetória. 

Nesta última San Diego Comic-Con, Nicole ainda falou sobre a responsabilidade e importância de ser a primeira super-heroína trans na TV, uma das questões muito debatidas nos últimos anos.

"Muitas pessoas estão realmente ansiosas para contar a história das pessoas transgêneras, especialmente porque é uma questão muito importante para a nossa sociedade hoje. Parece justo termos um super-herói trans para as crianças trans poderem se inspirar. Eu gostaria que houvesse uma quando eu era pequena", contou a atriz, hoje com 20 anos.

Agora, é só esperar para ver a primeira super-heroína trans da TV na quarta temporada de "Supergirl", que estreia em 14 de outubro.