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Johansson desistiu de papel transgênero - e escolheu ser parte da solução

Scarlett Johansson abriu mão de papel e se retratou - Jemal Countess/Getty Images
Scarlett Johansson abriu mão de papel e se retratou
Imagem: Jemal Countess/Getty Images

Caio Coletti

Colaboração para o UOL

13/07/2018 16h54

Scarlett Johansson citou "questões éticas" para anunciar, nesta sexta-feira (13), que estava "se retirando" da produção "Rub & Tug", um vindouro drama biográfico do mafioso Dante Tex Gill, um homem transgênero que comandou um império do crime na Pittsburgh dos anos 1970. A desistência de Johansson vem após dias de inclementes críticas de certos setores do ativismo LGBTQ+, especialmente, é claro, dentro da comunidade transgênero - e ela não é a primeira de sua estirpe a tomar essa decisão.

 Dante Tex Gill - Reprodução - Reprodução
Dante Tex Gill em ficha criminal
Imagem: Reprodução

Quando decidiu refazer o musical "The Rocky Horror Picture Show" para a TV, a emissora Fox queria um grande nome para encarnar Dr. Frank-N-Furter, a cientista e autoproclamada travesti, interpretada por Tim Curry no original, que cria uma "máquina do sexo" perfeita em seu laboratório. O escolhido foi Adam Lambert, ex-concorrente do "American Idol" e atual vocalista de turnê do Queen, mas o popstar não só recusou o papel como deu declarações públicas sobre o motivo pelo qual fez isso: "Eu senti que, em 2016, ser cisgênero e fazer um personagem trans é inapropriado. Nos anos 70 era diferente", disse na época.

Laverne Cox em "The Rocky Horror Picture Show" - Divulgação - Divulgação
Laverne Cox em "The Rocky Horror Picture Show"
Imagem: Divulgação

Lambert acabou participando da produção, mas no papel (cisgênero) de Eddie, o roqueiro interpretado por Meat Loaf no filme original. Enquanto isso, a estrela Laverne Cox, de "Orange is the New Black", colecionou elogios da crítica por sua performance como Frank-N-Furter. Cox, a primeira atriz transgênero a ser indicada ao Emmy e estampar a revista Time, é a exceção à regra de Hollywood, onde a maioria dos atores trans não tem oportunidade para sequer serem considerados para papéis. Jamie Clayton ("Sense8"), MJ Rodriguez ("Pose"), Mya Taylor ("Tangerine") e outros brilharam em seus projetos-revelação, mas ainda não consolidaram carreira - e há quem duvide que vão conseguir.

É por essa escassez de trabalho que a maioria dos atores transgênero se opõe à escalação de seus colegas de profissão cisgênero para papéis que representam a comunidade trans. O discurso comum é que, se houvesse uma igualdade de oportunidades para todos os atores, independente de sua identidade de gênero, a escalação de Johansson seria menos problemática, embora ainda persistisse a questão da autenticidade que apenas um ator trans pode trazer para expressar sua própria luta em tela.

Essa é a questão que Johansson, mais eloquentemente do que Lambert, parece ter entendido. Em sua declaração à revista Out em que oficializou sua desistência do papel, a atriz conhecida pela personagem Viúva Negra nos filmes da Marvel explica: "Nossa compreensão cultural de pessoas transgêneros continua a avançar, e eu aprendi muito sobre a comunidade desde que topei entrar no filme, e percebi que fui insensível. Segundo a GLAAD, personagens LGBTQ+ caíram 40% em 2017 em relação ao ano anterior, sem representação de personagens trans em qualquer lançamento de um grande estúdio. Eu adoraria ter a oportunidade de mostrar a história de Dante e sua transição em vida, mas entendo por que muitos sentiram que deveriam ser representados por uma pessoa transgênero".

Jared Leto no papel de Rayon no longa "Clube de Compras Dallas" (2013) - Divulgação - Divulgação
Jared Leto no papel de Rayon no longa "Clube de Compras Dallas" (2013)
Imagem: Divulgação

É uma mudança de tom considerável para a atriz que, logo após sua escalação em "Rub & Tug", dispensou as críticas com uma declaração que zombava do fato de que atores cisgênero como Felicity Huffman ("Transamérica"), Jeffrey Tambor ("Transparent") e Jared Leto ("Clube de Compras Dallas") interpretaram personagens trans antes dela, e saíram das "empreitadas" premiados. Ela não estava mentindo naquela primeira declaração, mas falhava em entender que seus colegas citados também estavam, como ela, impedindo a chance que atores transgênero teriam de interpretarem suas histórias em tela - o erro dos seus predecessores não apagava o erro de Johansson, apenas o sublinhava como parte de uma tradição preconceituosa e prejudicial.

A escolha da atriz, como ela veio a perceber, era bem simples: ser parte do problema, ou parte da solução. Johansson escolheu a segunda opção não só por renunciar ao papel, como também por colocar seu nome no entendimento de que ela nunca deveria ter sido escalada para ele. A pressão agora está nos produtores, e é óbvio que o peso da fama de Johansson e a natureza pública de suas declarações vai fazer com que eles sejam obrigados a escalar uma atriz transgênero, como aconteceu em "The Rocky Horror Picture Show".

Pessoas em posições de poder (financeiro ou hierárquico) dentro de qualquer indústria podem pressionar por uma maior inclusividade no mercado de trabalho. Ainda não estamos, em nossa representação cultural, no momento em que podemos escalar filmes e séries "sem olhar raça ou gênero", como pregam alguns defensores do tipo de decisão criativa que colocou Johansson em "Rub & Tug". Enquanto não estivermos, vamos precisar de mais gente privilegiada disposta a usar o seu privilégio para levantar bandeiras que não são suas. Não é a obrigação de ninguém, é claro - mas é a coisa certa a se fazer.