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Livro de ex-guitarrista revelará história "perdida" da Legião Urbana; leia trecho

Primórdios da Legião Urbana em Brasília - Reprodução/Facebook
Primórdios da Legião Urbana em Brasília Imagem: Reprodução/Facebook

Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

29/06/2018 04h00

Existe uma lacuna na história oficial da Legião Urbana compreendida entre sua formação em 1982 e a entrada do guitarrista Dado Villa-Lobos no ano seguinte, pouco antes da gravação do primeiro álbum. Embora breve, esse período embrionário de cerca de um ano rendeu brigas, prisão e uma inesperada separação devido a “divergências criativas”. Mais do que isso: foi importantíssimo na construção da identidade a banda de rock mais popular do país.

Os episódios e os detalhes desse processo são o chamariz de "Música Urbana - O Início de uma Legião", livro que Kadu Lambach, o "Eduardo Paraná", primeiro guitarrista da Legião Urbana, está preparando com o jornalista e economista André Luiz Molina (autor de “O Divã do Rock Brasileiro”). A obra, prevista para 2019, contará como o filho de funcionário público se mudou do Paraná para Brasília e encontrou sua turma com Renato Russo (vocal e baixo), Marcelo Bonfá (baterista) e Paulo Paulista (tecladista), afastando-se dela pouco tempo depois, ao menos musicalmente.

Kadu Lambach  - Divulgação - Divulgação
Kadu Lambach
Imagem: Divulgação

Na época, marcada pelas incertezas do fim da adolescência, Kadu tocava em uma banda de rock instrumental e sonhava viver de música, o que de fato ocorreu, mas não exatamente da forma que o amigo Renato, egresso do Aborto Elétrico, desejava. “Eu amava tocar com a Legião. A turma da Colina era a minha turma. Mas havia uma pressão por parte deles. Chegou um momento em que eles já não compravam minha estética de roqueiro clássico”, conta ao UOL Lambach, que fez carreira no jazz e MPB, chegando a tocar com Stanley Jordan, Jane Duboc e Belchior.

Fã de Led Zeppelin, Jimi Hendrix e Deep Purple, ele queria adicionar influências de guitarristas virtuosos à sonoridade da Legião Urbana, mas esse tipo de música era visto pelos ex-colegas como "ultrapassado". "Lembro de ouvir Genesis e King Crimson com o Renato, mas ele sempre vinha e pedia ‘faz uns barulhos na guitarra aí’. Minha mãe era professora de piano clássico. Eu não entendia o que era aquilo, o conceito do noise, algo que depois virou até disciplina em Berklee [faculdade americana de música, uma das mais importantes do mundo].”

Raridades

Trazendo raridades e materiais inéditos, "Música Urbana - O Início de uma Legião" terá prefácio escrito por Carmem Manfredini, irmã de Renato Russo. As histórias passam pela saída de Kadu, motivada por sua fidelidade à instrumental “O Cachorro”, considerada ‘progressiva’ demais para a Legião Urbana. O infame episódio do primeiro show em Patos de Minas, quando os integrantes tiveram de sair algemados após irritarem policiais com letras como a de “Música Urbana 2” (“Os PMs armados/vomitam música urbana”), será relembrado em minúcias.

Duas outras pepitas do livro: o “literário” primeiro press release da banda, redigido pelo então jornalista Renato Russo em forma de conto, em que detalha a personalidade de cada integrante (Paraná é descrito como "o virtuoso"), e fragmentos do que viriam a ser letras, incluindo a da rara “Provençal das Quadras”, primeira música ensaiada por Paraná como guitarrista na Legião Urbana e jamais lançada.

“Há muitas outras histórias do nosso início, dos primeiros ensaios. Fomos a primeira banda a alugar uma sala do prédio Radio Center, em Brasília, para ensaiar. Como a gente tocava muito alto, os funcionários ficaram revoltados. Uma mulher chegou dando esporro em mim e no Bonfá. Daí o Renato interveio e decidiu tentar uma outra abordagem, perguntando qual era o signo dela. (risos)”

Aval de Giuliano Manfredini

O projeto do livro, ainda sem editora, está em fase de captação via Lei Rouanet. Será vendido como “o primeiro de um integrante original da Legião Urbana”. De acordo com o autor André Molina, o filho de Renato, Giuliano Manfredini, deu sinal verde para o lançamento, que leva o nome de outro projeto de Kadu, o show em que apresenta o repertório da Legião. Este ano, o músico já lançou duas faixas inéditas daquela época com letra de Renato Russo: "Medieval" e “Vício Moderno", disponíveis em seu canal no YouTube.

“Eu tenho muito material. Letras que são um diamante e ficaram comigo por mais de 30 anos. Ainda não sei como vamos lançar isso, se vai ou não entrar no livro. Não falo com o Giuliano há muito tempo e não sei como está a coisa da briga dele com a família, mas a gente sabe que é preciso muito cuidado na hora de soltar material do Renato. A obra dele faz parte da história cultural do Brasil e merece todo o zelo”, entende Kadu Lambach, que manteve contato com o amigo por mais de uma década depois de deixar a Legião Urbana. Ele diz não guardar nenhum arrependimento da decisão. O que fica é só o pesar.

Mais ou menos em 1995, eu liguei para o Renato no Rio e o convidei para participar do meu primeiro disco solo. Ele disse: ‘Claro, Paraná, mas tem que ser logo!'. Achei vaga aquela resposta, não entendi. Daí descobri que ele era HIV positivo e, infelizmente, logo depois ele veio a falecer, sem conseguir participar.
Kadu Lambach

Imagens do primeiro show da Legião, no festival Rock no Parque de Patos de Minas, em 5 de setembro de 1982 - Cadoro Eventos/Carlos Alberto Xaulim/Reprodução - Cadoro Eventos/Carlos Alberto Xaulim/Reprodução
Imagens do primeiro show da Legião, no festival Rock no Parque de Patos de Minas, em 5 de setembro de 1982
Imagem: Cadoro Eventos/Carlos Alberto Xaulim/Reprodução

Leia abaixo, em primeira mão, passagem de "Música Urbana - O Início de uma Legião" em que Kadu Lambach deixa a banda Boca Seca para entrar na Legião a convite de Renato Russo.

O terceiro e definitivo show

A terceira apresentação foi a maior, melhor e a que, ao mesmo tempo, resultou no encerramento das atividades do grupo. Ao ser escalado para participar do Concerto Lago Norte, a responsabilidade aumentou. O festival contava com grupos emergentes de Brasília, mas que exibiam mais profissionalismo. O evento tinha infraestrutura adequada e atraía todas as tribos da Capital Federal. A mais notada delas, formada pelos punks, chamava a atenção da comunidade local.

- Quem promovia estes concertos era a mãe do Philippe Seabra (guitarrista e vocalista da Plebe Rude). Ela era da Associação dos Moradores do Lago Norte, se não me engano.

Enquanto as bandas tocavam, os punks causavam impacto com suas performances diferenciadas para a época. E não eram apenas os punks brasileiros que apareciam nestes eventos de maior porte. Filhos de embaixadores ingleses com cabelos espetados e correntes no pescoço eram respeitados e admirados. Eles eram mais radicais e autênticos que os de Brasília.

Após o encerramento da apresentação, Eduardo Paraná foi chamado por um punk ao descer do palco. “Gostei do seu som. Você quer fazer uma banda comigo? Vai ser eu, você e aquele cara”. Era o ex-líder do grupo Aborto Elétrico, Renato Russo, apontando para o baterista Marcelo Bonfá, que já conhecia Kadu de vista do Colégio Objetivo.

- Lembro claramente de descer do palco e ele me chamar e falar comigo. Renato apontou o Bonfá, que ficou olhando com uma cara do tipo – “já conheço esse sujeito”. Ao lado deles estavam os irmãos Fê e Flávio Lemos (futuros fundadores do Capital Inicial) e Helena Lemos, deitada em uma Caravan. “Esta é a musa da Tchurma”, afirmou Renato ao me apresentar a garota, que namorava o Dinho.

Eduardo Paraná aceitou o convite sem pensar. O ingresso à banda de Renato Russo era a chance de entrar na principal turma de Brasília pela porta da frente. Ao receber o convite, os punks que acompanhavam o mentor não impuseram restrições ao novo membro. Kadu sabia que a turma do Renato era fechada.

- Eu aceitei na hora. Por várias razões. Eu era fã de Aborto Elétrico. Gostava muito do estilo, apesar de não ser punk. Eu iria entrar na Tchurma. Era um grupo fechadinho. Existia um ambiente intelectual mais alto. Passavam outra imagem aos jovens. Todo mundo queria estar ali. Não tinha ninguém bobo ali. Vestiam-se de maneira diferente. Eu não tinha nada a ver com a música punk, mas sim com as pessoas. Outra coisa que me atraía eram as garotas. Ao ver Helena Lemos causou um impacto.

O recém-chegado integrante da nova banda notou que os discípulos de Renato Russo ficaram assustados. Naquele momento, ele percebeu que o núcleo da banda ainda sem nome era formado por Renato, que passava a tocar baixo e cantar, e Marcelo Bonfá na bateria. Para Eduardo Paraná, restaria a tarefa de empunhar a sua Giannini.

- Era um período em que estavam procurando um guitarrista. A nova banda sem nome foi formada com Renato e Bonfá que eram a célula. Na época era comum a mania de utilizar estes termos. Fizeram sessões com guitarristas, até com Philippe Seabra.
Com a entrada de Paraná na banda do Renato, foi decretado o fim da Boca Seca. O rock progressivo estava com os dias contados na Capital Federal. Eram os anos 80.

Ideia de núcleo

A ideia da “admissão” de um guitarrista na nova banda surgiu após frustrações de algumas intenções de Renato. Inicialmente, o compositor queria formar uma dupla com Marcelo Bonfá. Sendo ele no baixo e voz, Bonfá na bateria e músicos da Tchurma fazendo participações especiais. A opção surgiu quando Renato encontrou o baterista sem banda. Era para ser um projeto com convidados, mas a iniciativa não foi viável, devido à dificuldade em agregar os músicos de outras bandas e à indisponibilidade das agendas. A alternativa foi correr atrás de um guitarrista fixo e fazer uma banda nos moldes tradicionais.

Fardado

Como a Tchurma era bem fechada, Renato presenteou Eduardo Paraná com um uniforme militar, usado pelos punks de Brasília. A “farda” fornecia mais identidade, mas era ilegal e resultava em algumas prisões. “É uma forma de você se integrar com a Tchurma”, disse Renato. Paraná se sentiu orgulhoso e passou a usar a “farda” quase diariamente.