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20 anos de Diário de um Detento: as histórias do clipe mais icônico dos Racionais

Cena do clipe "Diário de um Detento", dos Racionais MC"s no disco "Sobrevivendo no Inferno" - Reprodução
Cena do clipe "Diário de um Detento", dos Racionais MC's no disco "Sobrevivendo no Inferno" Imagem: Reprodução

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

29/03/2018 04h00

Dá para dividir a história do videoclipe no Brasil em duas: antes de “Diário de um Detento” e depois de “Diário de um Detento”. Além de ser o vídeo mais icônico e que fez os Racionais MC's explodirem em popularidade, a exibição na MTV, há 20 anos, de um clipe de rap filmado em grande parte dentro da casa de detenção Carandiru, mostrando a realidade da prisão e de uma classe social inferiorizada e com 8 minutos de duração, foi algo que virou influência para muitos que vieram depois. E os envolvidos achavam que havia grandes chances daquele objetivo ousado não dar em nada.

“Diário de um Detento”, do disco "Sobrevivendo no Inferno", foi dirigido por Maurício Eça. Na época, ele estava apenas começando a fazer trabalhos de direção, atuava mais como assistente de direção, mas um projeto de gravar o videoclipe do Racionais MC's caiu em seu colo, já que o diretor da produtora tinha outros compromissos e não podia tocá-lo.

O trabalho chegou cheio de dúvidas: “Um dia ele me falou: ‘Vai rolar dois clipes do Racionais, um deles é da música ‘Diário de um Detento’. Acho que esse clipe não vai dar certo, fala do massacre (do Carandiru, quando a ação da polícia causou a morte de 111 presos), querem gravar dentro do Carandiru, é uma música super longa... Acho que não vai dar certo”.

Realmente, a missão era complicada. Mano Brown, que é o autor da música ao lado do ex-detento  Josemir Prado, o Jocenir, tratou de botar mais pressão. “Eu conhecia pouco de rap, era algo estereotipado na minha cabeça. E o Mano Brown chegou na primeira reunião com um olhar desconfiado. Falou: ‘Ou filma no Carandiru, ou não tem clipe’. Eu fui totalmente ingênuo: ‘Qualquer coisa, a gente faz no estúdio’. Mas ele insistiu: ‘Ou faz lá, ou não tem clipe’. Ele falou na boa, mas deu a condição dele e saiu da reunião”, relembra Eça. Restava a ele se virar.

A entrada no Carandiru

Havia duas direções a seguir. A primeira foi simples: eles conseguiram imagens de arquivo do Massacre do Carandiru, com jornais e TVs. Faltava conseguir a liberação para entrar no Carandiru. 

“Um juiz tinha que autorizar. E ele acabou autorizando”. Simples assim. Ou quase. O problema para o diretor e sua equipe é que não lhes foi concedido um tempo para conhecer o local, os cenários, os aspectos de iluminação... Sem a visita técnica, eles chegaram à casa de detenção e ainda foram surpreendidos: o diretor de lá não sabia de gravação nenhuma. A equipe perdeu um tempo com isso, mas foi liberada, com algumas condições: menos tempo, redução no pessoal e diversos equipamentos foram barrados.

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“Eu me juntei ao fotógrafo e falei que a gente tinha que se adequar. A letra de ’Diário de um Detento’ é muito cinematográfica, já tinha uma narrativa muito forte, então entramos para tentar encontrar as imagens que remetiam a ela e buscar o que houvesse lá dentro que nos permitisse humanizar o Carandiru, mostrar que tem vida lá dentro, tem seres humanos”, explica o diretor.

A recepção dos presos

Estar junto aos Racionais foi um ótimo jeito de entrar no Carandiru. A equipe, é claro, estava tensa com o fato de entrar na casa de detenção, mas os rappers eram idolatrados pelos presos, exatamente por mostrar a realidade deles, e isso facilitou o trabalho.

diário - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

“O pessoal lá de dentro participou, ajudando, contribuindo muito para ficar o mais realista possível” relata Eça. “Fomos para um lado mais documental, mas buscando uma linguagem e um visual belos, não tão sujos. Filmamos que nem loucos, como se fosse uma invasão, mesmo. A gente não tinha ideia do que estava fazendo; organicamente, fomos entendendo o processo, a força da música e dos Racionais para a periferia e como aquilo ia ter um impacto externo”,.

Eça admite que a experiência era maluca, com direito a códigos de conduta -- não usar boné, por exemplo. Um momento com misto de risos com tensão aconteceu quando um integrante da equipe que cuidava da fotografia pediu: “Moçada, vem todo mundo pro lado de cá”. Um dos presos deu bronca: “Você está vendo alguma moça aqui? Não, não, não. Aqui é RAPAZIADA!”.

“Deu medo de perder o controle”

O roteiro de “Diário de um Detento” mostrava um pouco do dia a dia dos presos. Mostrava o antes e o depois do massacre e tinha a intenção de mostrar como é a cadeia, do “rango podre”, como diz Eça, aos marombados, os boleiros, os religiosos. A ideia era contar pequenas histórias da casa de detenção, já que a parte do massacre, em si, era feita com imagens de arquivo, misturadas a filmagens de estúdio de Brown cantando no meio dos mortos.

“Na hora da cena do acerto de contas, que um intima o outro e tem uma correria na rua 10, os presos contaram como foi. Quando fomos filmar, eles começaram a bater mão nas paredes e grades e foi assustador. Queria que a cena acabasse logo, porque deu medo de perder o controle”, admite o diretor. Eles ainda conseguiram um dia extra em um estúdio e um no Capão Redondo para finalizar as gravações.

A postura de Brown e a estreia

“Ele tinha toda a razão”, diz Eça, ao relembrar a condição primordial para que o clipe fosse rodado, a entrada no Carandiru, concorda com Mano. “Depois eu fui entender que não dava pra simular as coisas. Ele (Mano Brown) tinha uma necessidade forte de contar a realidade lá de dentro. E tinha que ser isso”.

Racionais MC's em 1997 - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

A visão do rapper ajudou a moldar e direcionar o clipe na direção que ele acabou sendo feito. “O Mano Brown é muito exigente, ele tinha dúvidas se eu estava entendendo o que ele queria passar e a realidade dele. Muitas vezes ele contribuía falando como era o certo. Mas não tivemos nenhum problema. Zero. Foi tudo super rápido, super fácil”, conta Eça, que até estranhou que o videoclipe tenha ido ao ar sem qualquer tipo de barreira ou censura.

O diretor se recorda que os programas da MTV “Yo”, de rap, e o de João Gordo (“Garganta e Torcicolo”) estiveram entre os primeiros a passarem o vídeo. Não demorou, e ele entraria no “Disk MTV”, programa diário com as 10 mais pedidas dos telespectadores. E “atrapalhando”, com seus 8 minutos de duração.

Rodrigo Brandão, ex-VJ da MTV tendo liderado o "Yo!", programa de rap da emissora, diz que o impacto foi imediato. "Foi muito grande. Ele foi o catalizador da explosão nacional do Racionais. Antes do "Sobrevivendo no Inferno", o Racionais era gigante em São Paulo, mas era uma coisa "secreta" no resto do país. O carro chefe era aquela música e levou o grupo para um próximo nível. O clipe de rap brasileiro é dividido entre antes e depois de "Diário de um Detento", com aquele tom documental. Esse clipe realmente marcou época", analisou Brandão.

“Diário de um Detento” ainda vive

Maurício Eça admite que já tentou se desvencilhar um pouco do clipe, pelo qual sempre é lembrado. Mas acabou encontrando a maneira de levar as coisas com naturalidade.

“É uma coisa que faz parte da minha história, não tem jeito. É um troço que mexeu com muita gente, influenciou muito. A cultura de fazer clipe para o hip hop veio daí. Depois um monte de artista me procurou”, diz Eça, que trabalhou com artistas que lhe falavam desta influência. Criolo, Emicida e Projota são alguns que já citaram “Diário de um Detento”. O trabalho com os Racionais rendeu o prêmio de melhor clipe do VMB de 1998.

“O clipe ainda está muito vivo. Faço hoje muito menos clipes, mas quando um artista me procura, sempre tem como referência. E os Racionais hoje continuam sendo referência", conclui. A reportagem procurou Mano Brown e outros integrantes do Racionais MC's, mas eles não quiseram falar sobre os 20 anos do clipe.