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Projeto pode proibir Iron Maiden e Ghost no Brasil? O buraco é mais embaixo

Banda sueca de heavy metal, Ghost se apresenta em São Paulo em 2014 - Manuela Scarpa/Photo Rio News
Banda sueca de heavy metal, Ghost se apresenta em São Paulo em 2014 Imagem: Manuela Scarpa/Photo Rio News

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

05/10/2017 18h41

Show de bandas de rock e de metal como Iron Maiden, Black Sabbath, Ghost e Slayer correm mesmo o risco de serem censurados no Brasil? Esta semana, fãs ficaram apreensivos com a possibilidade apontada em um projeto de lei encaminhado à Câmara dos Deputados. Há duas questões importantes a se pontuar aqui: o primeiro é que a história não é bem assim; e o segundo é que o texto tem outras intenções por trás dessa interpretação.

Criado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), o projeto 8615/2017 propõe uma mudança no artigo 74 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O texto reforça a obrigatoriedade da classificação indicativa para qualquer apresentação ao vivo, mas um polêmico trecho acabou ganhando mais destaque, especialmente nas redes sociais: a proibição de "profanação de símbolos religiosos" em eventos e apresentações.

Feliciano propõe a seguinte emenda.

"§ 2º. Não será permitido que a programação de TV, cinema, DVD, jogos eletrônicos e de interpretação --RPG, exibições ou apresentações ao vivo abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e shows musicais, profanem símbolos sagrados."

A proposta abriu uma discussão: jogos de videogame como "Assassin's Creed" e "Castlevania", filmes que parodiam a bíblia, como "A Vida de Brian", e até shows que fazem referências a símbolos religiosos estariam de fato ameaçados no país?

Cena do jogo "Assassins Creed" - Divulgação - Divulgação
Cena do jogo "Assassins Creed"
Imagem: Divulgação


Organizações que acompanham direitos humanos defendem que o projeto abre, sim, espaço para a proibição de qualquer expressão artística, incluindo os shows.

"Não cabe ao Estado fazer um tipo de fiscalização desse tipo. Isso abre um caminho perigoso para a prática de censura", defende a Beatriz Barbosa, coordenadora do coletivo Intervozes, que integra o comitê que monitora, junto ao Ministério da Justiça, o trabalho de classificação indicativa no país.

Ao UOL Feliciano diz receber muitas denúncias de jogos violentos --"mas não sei os nomes", diz-- e, após ser apresentado pela reportagem à banda Ghost, cujo vocalista se veste como um papa zumbi, afirmou achar a provocação desnecessária.

Porém, o deputado deixa claro a motivação principal para o projeto: "Não tem como proibir essas bandas. Meu projeto não é de censurar a arte. É censurar o abuso infantil. Eu não quero que nossas crianças sejam colocadas diante daquilo que não é para idade delas e que as pessoas que são religiosas não sejam profanadas a troco de nada".

Feliciano se refere à performance "La Bête", no MAM (Museu de Arte Moderna), em São Paulo, que foi criticada por exibir nudez a um público com crianças, e à mostra "Queermuseu", encerrada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, após a acusação de que obras expostas incitavam a pedofilia e a profanação religiosa.

"[Na mostra] Tivemos exatamente esse exemplo: pegaram uma hóstia, que representa o corpo de cristo para os católicos, e escreveram vagina. O código penal artigo 208 [que proíbe 'escarnecer, impedir vilipendiar ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso' sob pena de um mês a um ano] já prevê como crime, mas só se torna crime se alguém fizer uma denúncia. Como em obras de arte isso não é visto como crime, fica elas por elas", justifica.

O deputado explica que redigiu o projeto "correndo", no calor das reações em torno dos dois eventos artísticos. 

Presidente da Comissão de Direito Infantojuvenil da OAB-SP, o advogado Ricardo de Moraes Cabezón entende que, formalmente, o "projeto traz problemas", principalmente no trecho que viralizou sobre "símbolos sagrados".

"É algo que precisa ser conversado melhor. Ao que parece, sim, está se vedando algo. Daí o porquê da necessidade de se propor um debate sobre o que seria objeto sagrado e se é o caso de proibir ou não", explicou.

"A discussão é descabida dentro do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente, direcionado a jovens até 18 anos]. Tem que ser uma discussão mais ampla, porque ela trata de garantias fundamentais, como a liberdade artística e religiosa", diz o advogado. 

Obras de Bia Leite no "Queermuseu": Mostra foi fechada antes do término - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Obras de Bia Leite no "Queermuseu" em Porto Alegre: Mostra foi fechada antes do término
Imagem: Reprodução/Facebook

Moral e bons costumes

No texto enviado à Câmara, Feliciano reforça os "princípios da moral e dos bons costumes" para justificar o projeto. "O PSC, por ser um partido cristão que preza por uma sociedade mais justa arraigada nos princípios da moral e dos bons costumes, sobretudo, da dignidade humana, não pode nunca compactuar com tal comportamento", ele diz.

Com a experiência no comitê de classificação indicativa do Ministério da Justiça, Beatriz Barbosa analisa: "A política de classificação não deve passar por moral. Se assim fosse, um beijo gay não poderia ser exibido na TV. A criança pode ver um beijo gay, não é prejudicial, é saudável e forma a diversidade para a criança. Agora ela ver um massacre de 30 pessoas em uma cena violenta, ver uma cena de sexo explícito, uso de drogas indiscriminado, isso tem impacto na formação dela. Por isso existe a classificação etária", defende.

Como funciona?

A sugestão de Feliciano em obrigar a classificação indicativa já existe na prática. Exercido pelo Ministério da Justiça e garantido na Constituição Federal, o trabalho tem como objetivo de recomendação, e não proibição. "Se os pais querem deixar a criança assistir a um filme às 22h, é uma decisão da família. O papel do Estado e da sociedade é informar às famílias que aquele conteúdo não é recomendado", afirma Beatriz Barbosa.

Hoje, as emissoras de TV, produtoras de audiovisual, shows, games e desenhos animados autoclassificam o material de acordo com a faixa etária, seguindo as orientações do manual emitido pelo Ministério da Justiça. O comitê faz o trabalho de avaliação e determina se a classificação condiz ou não com o conteúdo. Nos últimos anos, 98% das obras tiveram as classificações mantidas.

Exposições e mostras de artes visuais não têm obrigatoriedade de ter classificação indicativa --e também não são citados no projeto de lei do deputado--, mas algumas instituições já adotam o critério da autoclassificação com base no mesmo manual.

E é nessa área que Feliciano guarda sua maior crítica. "Não consigo entender essa arte moderna. Com todo respeito, é lixo. Tem que encher os olhos e o coração, isso é arte. Que arte é essa em que [Jackson] Pollock vomita numa tela?", questiona. Referência do expressionismo abstrato, o artista norte-americano na verdade pintava suas telas com a técnica de gotejamento --e usava apenas tinta.

O texto apresentado pelo deputado está, atualmente, anexado a projetos semelhantes e outros mais antigos. Nesses casos, a tramitação acontece em conjunto. Feliciano diz que vai pedir celeridade na discussão.