Era uma vez um sujeito que deixou a barba crescer. E não parou mais
Durante grande parte de sua vida, Dave foi apenas mais um cidadão exemplar da ilha de Aqui. Funcionário modelo, apreciava a organização dos gráficos sob sua responsabilidade. Suas roupas refletiam a sobriedade de seu cotidiano. Ele obedecia rigorosamente ao padrão e passava despercebido entre os habitantes de Aqui - até sua barba começar a crescer descontroladamente, causando histeria e pânico coletivo entre os moradores de sua terra natal. Os eventos fantásticos narrados em "A Gigantesca Barba do Mal" compõem a primeira graphic novel do quadrinista britânico Stephen Collins, lançada agora no Brasil pela editora Nemo.
"Queria pegar uma ideia engraçada e transformar em uma espécie de horror físico que ressalta um medo inerente a todo ser humano, de termos algo crescendo dentro de nós, como a criatura saindo do peito das pessoas em 'Alien'", conta o artista de 36 anos em entrevista ao UOL.
As 240 páginas em preto e branco de "A Gigantesca Barba do Mal" tratam principalmente da materialização em forma de pelos faciais dos anseios criativos mais reprimidos de seu protagonista. As origens da barba fogem completamente ao controle de seu personagem, diz o quadrinista. "Ele é afligido por essa coisa demoníaca que não deixou crescer por diversão, como talvez algumas pessoas possam esperar pelo título", cogita Collins. "É a representação de alguma outra coisa que sai de dentro dele para o mundo, e não apenas uma simples consequência de suas ações. Ele fica absolutamente desamparado", conta o autor.
O medo e a hostilidade dos moradores de Aqui em relação a Dave após o surgimento da barba e aos distantes territórios de Lá, composto por tudo o que existe fora da ilha, também são centrais na obra de Collins. Ele vê um diálogo entre o conservadorismo dos habitantes de sua ilha imaginária e a difusão de posições xenófobas e reacionárias ao redor do mundo nos últimos anos. "As pessoas buscam cada vez mais descartar tudo aquilo que está distante delas. No meu livro elas vivem em uma ilha chamada Aqui e não acreditam em nada que exista além dela. Elas temem tudo que existe além de seu mundo pequeno."
Para o quadrinista, caso Donald Trump, o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, perca as eleições para a democrata Hillary Clinton, ele deveria se candidatar a algum cargo na ilha do quadrinho. "Se Trump perder em novembro, e torço desesperadamente para que isso aconteça, ele pode com certeza ser eleito na ilha de Aqui", brinca o autor.
Apesar de a HQ ter sido publicada na Inglaterra em 2013, Collins vê relações entre seu conteúdo com a ascensão política de Trump nos EUA e a saída do Reino Unido da União Europeia, a chamada Brexit. "'Se você não compartilha da minha visão de mundo, é menos do que um ser humano'. Trump é um grande representante desse pensamento. A ideia do muro que ele quer construir separando os Estados Unidos do México, assim como a Brexit, é exatamente o tipo de coisa assustadora, conservadora e mesquinha que eu queria satirizar."
A observação aguçada sobre os acontecimentos internacionais refletida em "A Gigantesca Barba do Mal" aparece nas tiras semanais de Collins publicadas no jornal britânico "The Guardian" desde 2011. O autor também é responsável por ilustrações editoriais presentes em publicações como o site da BBC, os jornais "The Independent" e "La Repubblica" e as revistas "Wired" e "GQ".
Enquanto "A Gigantesca Barba" acaba de ganhar sua edição em português após ser lançada em Estados Unidos, Espanha, Itália, Alemanha e França, Collins está atualmente trabalhando em seu próximo projeto. Batizado provisoriamente de "Bad Likeness" (Semelhança Ruim, em tradução livre), o livro é focado parcialmente nessa mesma crise de identidade e perda de personalidade que afeta o cidadão comum.
Os protagonistas da obra serão os donos de dois museus de cera de uma cidade pequena."Eles entram em guerra", revela o quadrinista. "Um é um museu antigo e tradicional, cheio de figuras horríveis e idênticas de celebridades, administrado por um cara chamado Keith. O outro é um museu moderno, cheio de luzes, animações e efeitos especiais, pertencente a uma celebridade de televisão chamada Wilson Lamar. Deve ser publicado em 2018, então ainda tem um caminho aí pela frente. Sou bastante lento para esse tipo de coisa", avisa.
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