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Ex-funcionário de fast-food leva livro para passear no McDonald's de Paris

O escritor Henrique Rodrigues com seu livro "O Próximo da Fila" - Divulgação
O escritor Henrique Rodrigues com seu livro "O Próximo da Fila" Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

07/04/2016 12h55

O escritor Henrique Rodrigues, 40, esteve por Paris há pouco tempo. Por lá participou da Primavera Literária Brasileira, na Universidade de Sorbonne e do Salão do Livro da cidade. Também conversou com jovens alunos da escola Lycée Sophie Germain – papo que dividiu a atenção dos estudantes com os protestos que aconteciam pelas ruas de Paris no dia seguinte aos atentados em Bruxelas. Ainda teve tempo de jantar um dia no McDonald's, onde ficou observando os atendentes – algo que sempre faz quando vai a lanchonetes do tipo – e tirou algumas fotos do seu mais recente livro tendo a loja como cenário.

Pode soar estranho um escritor aproveitar a passagem pela terra de Sade, Baudelaire e Balzac para ir a uma unidade da rede de fast-food e ainda aproveitar para clicar sua criação por lá, mas não no caso de Henrique. Seu mais novo trabalho, lançado no final de 2015, é o romance “O Próximo da Fila” (Record), sobre um jovem em busca de seu primeiro emprego, oportunidade que encontra justamente atrás do balcão de uma lanchonete.

O livro "O Próximo da Fila" em um McDonald's de Paris - Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal - Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal
O livro "O Próximo da Fila" em um McDonald's de Paris
Imagem: Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal

É lá que ele se queima na chapa, é encarado como um ser não pensante pelo patrão e aprende a dança do esfregão: para limpar o chão, precisa pegar o objeto, fazer um oito, ou o símbolo do infinito, e ir andando para trás, sempre para trás. Não cita o nome do estabelecimento, mas não é difícil deduzir de qual rede ele fala.

No livro, o autor também aproveita para mostrar a conturbada realidade brasileira no final nos anos 1980 e começo dos anos 1990. “Queria dialogar com o jovem de hoje sobre como era ser um adolescente pobre no Brasil daquela época de hiperinflação, antes da estabilidade que melhorou a vida da nossa classe C e D, mas que, por ironia, parece começar a ruir”, explica Henrique.

“Olhar para mais de vinte anos atrás pode ser uma forma de entendermos um pouco o nosso presente. A ironia é que, quando escrevi o livro, entre o fim de 2014 e início de 2015, estava meio aliviado de falar de algo que tinha ficado no passado”, recorda.

Favela, Mc Donald's e Vinicius de Moraes

Apesar de ser uma ficção, “O Próximo da Fila” tem muito a ver com a própria biografia de Henrique. Ele mesmo teve como primeiro emprego o cargo de atendente em um McDonald's, onde ficou durante mais de três anos, dos 15 aos 18 - seu ex-chefe, inclusive, comprou 50 exemplares da obra para distribuir aos funcionários de outra rede que administra atualmente.

Antes disso, uma infância humilde. Aos dez anos, foi levado de casa com o irmão pela mãe, que fugiu do lugar por não aguentar mais os espancamentos que sofria quando o pai do garoto estava bêbado. Deixaram a cidadezinha de Itaguaí (RJ), num trecho emancipado onde hoje fica o município de Seropédica, e foram morar na Pavuna, na capital fluminense.

Aos 13 anos, quando ganhou um concurso de frases na escola, comentou com o padrasto que gostaria de ser escritor, mas teve uma triste resposta. Viu o homem apontar para um gari com um carrinho de lixo e vassoura e dizer “ali, você vai ser escritor que nem ele, com a vassoura e o tinteiro”.

“Sei que ele não falou por mal, ainda que implicasse um pouco comigo. É que imperava a ideia de que esse tipo de atividade não era para nossa 'gente'”, diz. No entanto, gostando mais de ler e escrever do que a maioria dos amigos e colegas, Henrique continuou com aquilo na cabeça: queria ser escritor.

O escritor Henrique Rodrigues, na época em que trabalhava no McDonald's - Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal - Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal
O escritor Henrique Rodrigues, na época em que trabalhava no McDonald's
Imagem: Henrique Rodrigues/Acervo Pessoal

Quando entrou no McDonald's, adorava compor letras de rap e poesia. Tinha também o hábito de decorar sonetos de Vinicius de Moraes para recitá-los às garotas das quais gostava, sempre, ao final, dizendo que os belos versos eram de sua própria autoria. Aprofundando-se cada vez mais na literatura enquanto não estava à frente das chapas fritando hambúrgueres, resolveu que queria cursar Letras, o que abalou seu ambiente profissional.

“Faculdade também era uma coisa que não era pra gente, e sim para rico. Passei no vestibular e foi uma festa, mas sofri algumas represálias no próprio McDonald's, e parte disso coloquei no livro, inclusive. Era como se tivesse feito algo errado, como se quisesse parecer melhor que os outros”, lembra. Para estudar, teria que mudar o turno de trabalho, solicitação prontamente vetada por um gerente. Pediu demissão e foi trabalhar em uma locadora de filmes e jogos de videogame, pois não podia deixar de ajudar com as despesas de casa.

Depois se formou em Letras - foi a primeira pessoa de sua família a ter um diploma de curso superior, passando a servir de exemplo para os mais novos - tornou-se mestre e doutor em Literatura, foi pesquisador de leitura da PUC-Rio, superintendente pedagógico da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro e coordenador do programa Oi Kabum!, que ensinava arte para jovens de periferias. Hoje é uma das cabeças à frente dessa área no Sesc, sendo um dos responsáveis pelo prêmio que a instituição oferece anualmente a novos escritores, que já revelou nomes como Luisa Geisler e Lúcia Bettencourt.

Legião Urbana e Beatles

Por onde passa, aproveita para levar também um pouco da sua paixão pela literatura. É comum que acorde cedo para conversar com alunos de escolas públicas pela manhã, antes do começo do seu expediente. “Como cidadão e profissional da área da leitura, sou engajado no trabalho formativo. Adoro visitar escolas, principalmente as públicas, pois é uma forma de devolver para a sociedade o que ela me ofereceu. Tive ótimos professores e grandes amigos com quem aprendi muito”.

Quando vai a redes de fast-food, quase sempre conversa com os atendentes e acaba falando sobre “O Próximo da Fila”. “Alguns ficam bem curiosos. Acho que como são novos e com escolhas a fazer pela frente, ficam pensando como seria para eles seguir por um caminho semelhante”.

E escreve bastante também. Apesar de “O Próximo da Fila” ser seu primeiro romance, já publicou outros dez livros, como o infantil “Alho por Alho, Dente por Dente” (Memória Visual) e o de poesia “A Musa Diluída” (Record). Como organizador, capitaneou coletâneas de textos breves inspirados em músicas de duas de suas bandas preferidas: Legião Urbana e Beatles, que deram origem aos livros “Como Se Não Houvesse Amanhã” - no qual assina o conto baseado em “Acrilic on Canvas” -, e “O Livro Branco” - para o qual escolheu a música “Hey Jude” como “musa”. E o próximo será o “Palavras Pequenas”, outro infantil, que está prestes a ser lançado pela Bazar do Tempo.

Meritocracia e literatura marginal

Com essa trajetória, impossível conversar com Henrique e não entrar na questão da meritocracia, assunto sobre o qual tem uma opinião estabelecida. “Acho que a gente tem que correr atrás. É muito comum, entre os mais pobres, as pessoas esperarem que a solução venha de fora, seja do Estado, seja se acomodando com a ajuda de parentes. Apesar de terem surgido ótimos programas de inclusão, como os sistemas de cotas, não acho que haja uma justiça social geral e ampla que venha de fora para dentro. Acredito que o mais importante é o contrário: o que cada um pode fazer de dentro para fora, de si para os seus próximos e para o mundo. O ideal mesmo é que esses dois movimentos aconteçam”, afirma, lembrando também que não gosta de ouvir “você deu sorte na vida” como justificativa alheia pelas suas conquistas.

Outra coisa que Henrique tenta evitar é ser apresentado como “escritor periférico” por conta de sua origem. "Isso requer do autor um conjunto de maneirismos, de tipo de discurso, modo de falar, vestir-se e escrever de forma monotemática, me parece uma rotulação redutora. E se o cara quiser abordar outro assunto também, outra estética? Aí está fora porque não fica bem na foto?”, opina. “Gosto de participar de eventos literários, mas quero ser convidado pela qualidade do que escrevo, não porque na minha casa não tinha luz elétrica.”

E onde ele se encaixa? “Me considero apenas um autor, sem rótulo, pois apesar dos rótulos abrirem portas em curto prazo para eventos e mídia, em médio e longo prazo o autor fica aprisionado na temática e no estilo de determinado segmento. Por isso preferi a liberdade de escrever poesia, conto, crônica, infantil, romance… sem nenhuma amarra”.

Só não vale, portanto, comparar a literatura de Henrique Rodrigues a um lanche de fast-food.