Crise de refugiados na Europa inspira HQ ilustrada por brasileiro
O protagonista do quadrinho "Goela Negra" (Editora Mino, R$58) se chama Marcel e está no fim da adolescência. Funcionário de uma mina de carvão no norte da França no início do século 20, ele sonha com a possibilidade de uma vida menos sofrida em Paris. Mas a trama do álbum roteirizado pelo escritor francês Antoine Ozanan e ilustrado pelo brasileiro Lelis poderia muito bem ser ambientada nos dias de hoje. O personagem principal talvez tivesse um nome de origem árabe, mas suas aspirações seriam as mesmas: uma oportunidade de emprego e de melhor qualidade de vida em um grande centro urbano europeu.
“Acho muito difícil não me posicionar”, conta Ozanan em entrevista por e-mail ao UOL. Segundo o escritor de 45 anos, o fluxo intenso de imigrantes e refugiados que tentam chegar à Europa acabou sendo uma inspiração óbvia para seu mais recente trabalho. No entanto, a figura do estrangeiro está representada em um personagem francês. “Ver pessoas morrendo por egoísmo vai contra os meus valores. Para poder contribuir de alguma forma, pretendo escrever cada vez mais histórias politizadas. Tenho esperança que a mensagem será lida e compreendida”.
"Goela Negra" ganhou uma edição brasileira menos de dois meses após seu lançamento na França. Responsável pelo traço em preto e branco e repleto de nuances do quadrinho, o mineiro Lelis ressalta as mesmas conotações políticas da HQ. Apesar da produção do livro ter sido iniciada em 2010, o contexto político internacional dos dias de hoje deu ainda mais peso à trama sobre um jovem repleto de ambições fora de sua cidade natal.
“É alguém que está saindo de uma situação super-precária. Naquela época os trabalhadores nas minas sofriam muito, o trabalho era muito duro e viviam numa cidade sem perspectiva nenhuma além de trabalhar nas minas. É como os refugiados da Síria, sem qualquer perspectiva além de viver com a guerra”, analisa Lelis, 48. Ao finalmente chegar em Paris, Marcel encontra uma efervescência e uma polarização política não muito diferente dos dias de hoje.
Em Belo Horizonte tem os refugiados do norte de Minas. Eles estão vindo aos montes, fugindo dos desmandos políticos, em busca de novos horizontes e perspectivas. Isso é muito comum no Brasil, historicamente São Paulo foi povoada pelos imigrantes.
Lelis, ilustrador de "Goela Negra", fazendo um paralelo entre o Brasil e a HQ, que se passa no início do século 20
O roteiro de Ozanan foi escrito a partir de sua experiência morando em Lille, no norte da França: “Essa região ainda é repleta de minas e muito dependente do carvão. Então eu tinha todas as informações possíveis à disposição. Essa história também me permitiu falar sobre Paris e vizinhanças nas quais eu morei e trabalhei”, diz.
Para reproduzir a arquitetura e a geografia da vila do protagonista e da Paris do início do século passado, Lelis fez uso de fotografias. Apesar de inicialmente pensado como uma obra colorida, "Goela Negra" acabou chegando às livrarias em preto e branco. “Comecei a incorporar uma sujeira dentro das páginas que tinha a ver com o aspecto da mina e é um estilo que tenho também de trabalhar com o preto e branco”, explica o ilustrador.
Se os aspectos urbanos do livro estavam distantes da realidade de Lelis, ele não teve problemas em se identificar com a jornada do protagonista da obra. Nascido em Montes Claros, no norte de Minas Gerais, ele já morou em Belo Horizonte e em São Paulo. Atualmente está instalado na pequena Lagoa Santa, cidade há 30 km de Belo Horizonte, próxima ao aeroporto de Confins.
“Em Belo Horizonte tem os refugiados do norte de Minas. Eles estão vindo aos montes, fugindo dos desmandos políticos, em busca de novos horizontes e perspectivas. Isso é muito comum no Brasil, historicamente São Paulo foi povoada pelos imigrantes. Tem tudo a ver com a gente”, reflete o quadrinista.
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