Topo

Ataques xenófobos a imigrantes são motor de peça com atores haitianos

Miguel Arcanjo Prado

Colaboração para o UOL, em São Paulo

04/11/2015 17h10

O grupo paulistano Teatro de Narradores fazia residência artística no Brás, região central de São Paulo, com o objetivo de pesquisar os imigrantes que ali vivem, quando um grupo de haitianos foi alvejado por balas de chumbinhos disparadas por xenófobos, que fugiram em um carro, em agosto deste ano. O fato foi crucial para o grupo e fez com que a comunidade haitiana entrasse para o centro do projeto do espetáculo "Cidade Vodu".

O espetáculo lembra o grande terremoto de 12 de janeiro de 2010, que destruiu o Haiti, além de pincelar fatos históricos do país caribenho e expor as perspectivas dos haitianos que migraram para o Brasil em busca de trabalho e estudo, precisando lidar, muitas vezes, com o racismo dos brasileiros.

Ainda em processo, "Cidade Vodu" foi apresentada ao público pela primeira vez na última terça (27), no projeto Terça Tem Teatro do Itaú Cultural, e estreia oficialmente em março de 2016 na MitSP (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo). No elenco, estão atores brasileiros dividindo o palco com atores, músicos e performers haitianos radicados em São Paulo, sob direção de José Fernando Peixoto de Azevedo.

Em uma cena contundente, é exibido um vídeo da internet no qual um soldado brasileiro em missão no Haiti ensina, de forma debochada e cruel, a música "Abecedário da Xuxa" a crianças órfãs haitianas.

Conhecer o Haiti

Laurie Jeanty, haitiana que na peça canta a canção de forma indignada após a exposição do vídeo, diz que faz o espetáculo porque deseja divulgar sua cultura e seu povo, lembrando que muitos brasileiros, infelizmente, sabem muito pouco sobre o Haiti.

"Divulgar nossa imagem é importante para nós. Para os brasileiros saberem quem são os haitianos, a nossa história, de onde viemos. Essa iniciativa não será a última. Vamos continuar a fazer isso até que haja uma repercussão maior", declara. Apesar de demonstrar segurança em cena, a peça marca sua estreia no teatro. "Eu me sinto bem no palco, achei extraordinário poder fazer isso. Estou gostando bastante", conta.

Também haitiano, Joel Aurilien, músico e ator da peça, conta que está no Brasil há dois anos: "Cada haitiano chega aqui em uma situação, com sua própria história. É muito difícil para mim encontrar trabalho na minha área, ainda não consegui", conta Aurillien, que também é formado em administração de empresas. Fazer teatro está sendo uma nova experiência para ele. "Estou encontrando outra disciplina, unir o lado músico ao lado ator. Está sendo muito interessante. Precisamos contar essa história", afirma.

O cineasta haitiano Patrick Dieudonne também está na peça. Ele atua com sua câmera, criando imagens ao vivo na telona atrás do palco enquanto se passa a encenação. Ele conta que já possuía mais familiaridade com o teatro. "Comecei pequeno, com minha tia, atriz que fazia teatro no Haiti e na França. Ainda criança, comecei também com a câmera, gravando cenas para ela".

Para Dieudonne, não só o Brasil como o mundo desconhecem o Haiti. "Sempre que viajo, as pessoas não sabem onde fica o Haiti, nem que ele foi o primeiro país a abolir a escravidão. O mundo precisa conhecer nossa história, do que somos capazes. Queremos abrir novas fronteiras", fala. O cineasta retratou o horror do terremoto no Haiti em filmes realizados na própria ilha do Caribe. E se diz satisfeito em poder unir seu cinema ao teatro brasileiro: "A câmera para mim é uma mágica".

Brasil racista

O diretor José Fernando Peixoto de Azevedo, que também é professor doutor e diretor da Escola de Arte Dramática da USP (Universidade de São Paulo), lembra que o processo de trabalho com os haitianos é feito com respeito mútuo. "Temos de ter o cuidado de não repetir lógicas que estamos querendo criticar. É um momento de a gente entender o outro", diz.

Para ele, a peça, além de falar sobre o Haiti, fala muito sobre o Brasil de hoje e o comportamento atual de muitos brasileiros. "Trazer tudo isso à tona poeticamente faz a gente pensar sobre nós mesmos". E ele lembra que muitos haitianos se assustaram quando se depararam com hostilidade no contato direto com nossa sociedade. "Um haitiano me formulou da seguinte maneira: 'Sua presidente disse que poderíamos vir, que poderíamos trabalhar, que poderíamos estudar. Ela só não disse que vocês eram racistas'".

Ele aponta que os haitianos "querem se misturar" e gostam de se integrar na sociedade, não admitindo viver no gueto. E que isso "é insuportável para muita gente", lembrando que a sociedade brasileira sempre afirmou a mistura, mas a praticou de forma a apagar as diferenças. "A mistura no Brasil é sempre o desaparecimento do Outro".

Na visão de Azevedo, "o Brasil ainda não elaborou a escravidão como problema", por isso, "o racismo é estrutural e estruturante" em nossa sociedade. "A presença dos haitianos explicita esse racismo que de certo modo nos atravessa, mas que a gente cordializou, no sentido de fingir que amenizava. E esse fingimento é a maior violência. Os haitianos nos estão ajudando a olhar para o Brasil, que vive um momento no qual o outro é um problema", declara.