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Morte de Mindlin faz 5 anos e seus 60 mil livros seguem disponíveis na USP

Interior da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Interior da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Imagem: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

28/02/2015 06h00

Há exatamente cinco anos, em 28 de fevereiro de 2010, José Mindlin morreu vítima de falência múltipla de seus órgãos, aos 95 anos. O então maior bibliófilo do país –e um dos maiores do mundo, sendo comparado a nomes como Umberto Eco-- deixou uma coleção com dezenas de milhares de livros, boa parte deles raros, como um dos três exemplares que restaram em todo o mundo da primeira edição de “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo.

O colecionador começou a esboçar o seu acervo bastante jovem. Aos 13 anos, já vasculhava os sebos de São Paulo em busca de títulos específicos que não encontrava nas livrarias.  Ao longo da vida, Mindlin centrou seus interesses principalmente em livros que, de alguma forma, fossem relacionados ao Brasil –literatura nacional, importantes traduções, relatos históricos...

Com o avançar da idade, em 2006 o bibliófilo começou a doar esse acervo para a USP, fazendo algumas poucas exigências, como o acesso público aos títulos, a coesão da coleção –é comum que, ao receberem doações, universidades repartam os livros por bibliotecas diferentes-- e a construção de um prédio em condições ideais para abrigar suas preciosidades. Assim surgiu a  Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, que hoje conta com os mais de 60 mil volumes que outrora foram do colecionador.

Ao entrar na biblioteca --cujo espaço impressiona pela união entre a beleza, a limpeza e a tecnologia--, olhando para cima, vê-se um vão livre delimitado em suas laterais pela coleção de Mindlin. Todo o saber contido ali está, literalmente, sobre nossas cabeças. A claridade do pavimento térreo contrasta com a luz tênue das câmaras onde os livros ficam, acondicionados sob controle de iluminação, umidade e temperatura, para que não haja nenhum prejuízo aos volumes, como o ressecamento de folhas ou o desbotamento de capas ou lombadas.

Cristina

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    Ele não recebia qualquer pessoa, afinal, era a residência dele, mas não negava o acesso ao livro, desde que não existisse em outra biblioteca

    Cristina Antunes, administradora da coleção de Mindlin

Essas câmaras, onde prateleiras enfileiradas acomodam os livros, possuem acesso rigorosamente controlado por sensores biométricos --apenas cinco funcionárias do local têm suas digitais cadastradas para adentrá-las. Uma dessas pessoas é Cristina Antunes, que trabalhou 33 anos com Mindlin, administrando a coleção do bibliófilo em sua casa antes de ela ser transferida para o prédio público. Atuando na biblioteca e sendo, provavelmente, quem hoje melhor conhece aquele acervo, lembra que a maior vontade do colecionador era “deixar algo para as futuras gerações”.

Zelo pelos livros

Dentre outros ambientes, a biblioteca possui uma sala com seis mesas, ocupadas por quatro cadeiras cada, onde o público pode consultar os livros da coleção –que devem ser selecionados e requisitados àqueles com acesso ao espaço controlado. Essa sala é constantemente observada por uma bibliotecária e, sobre cada mesa, há uma câmera. Além disso, não se pode entrar no espaço com lápis ou caneta, por exemplo. Tudo para que se garanta a segurança e integridade dos volumes.

Boa parte do acervo está digitalizada e à disposição de todos, mas, caso os pesquisadores –principal público do lugar– necessitem ter acesso a exemplares físicos de volumes frágeis, desgastados pelo tempo, precisam ainda usar luva para manuseá-los. Em outro espaço, pequenos gabinetes privativos estão à disposição daqueles que desejam fazer pesquisas mais longas, que exijam dias ou meses enfurnados na biblioteca –contudo, para lá os livros da coleção não podem ser levados. Dentre as obras mais requeridas, segundo Cristina, primeiro estão as relacionadas a viagens –como os primeiros relatos sobre o país e a impressão estrangeira sobre o Brasil ao longo dos séculos–, seguidas por títulos de literatura e história.

Sorte e dedicação

Para arquitetar a coleção, Mindlin contou com a sorte e a generosidade de companheiros. A primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar, escapou-lhe diversas vezes, por exemplo. Na primeira tentativa de adquiri-la, o amigo que lhe representou no leilão desistiu dos lances por julgá-la cara demais. Mindlin ainda perdeu outro leilão antes de conseguir arrematá-la na terceira tentativa, após mais de 15 anos em busca do volume. Comprou de um grego, mas, ao voltar da Europa, perdeu o seu tesouro no avião. A obra-prima de Alencar, mais uma vez, não era do colecionador. Mal pôde acreditar quando, três dias depois, encontraram e lhe devolveram a preciosidade. Já a primeira edição brasileira de outro título de extrema raridade, “Marília de Dirceu”, de Tomás Antonio Gonzaga, publicada em 1810, chegou às suas prateleiras como um presente dado por outro bibliófilo.

Contudo, o fator decisivo para a construção do acervo, cujo valor total ou de obras específicas jamais foi revelado por Mindlin (“se falasse de um livro, algum outro ficaria com ciúmes”, dizia), foi mesmo o empenho do colecionador. Almejando, garimpando e se desdobrando para conseguir cada livro que desejava, Mindlin organizou a maior biblioteca brasiliana do país. Ainda em sua casa, já liberava o acesso de pesquisadores aos livros. “Ele não recebia qualquer pessoa, afinal, era a residência dele, mas não negava o acesso ao livro, desde que não existisse em outra biblioteca”, lembra Cristina.

Um homem generoso

Dentre todos os autores brasileiros, a maior paixão de Mindlin foi Machado de Assis, mas também admirava profundamente Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Já dentre os estrangeiros, amava intensamente a obra de Marcel Proust, a ponto de também manter uma coleção focada somente nos livros escritos pelo francês e sobre ele. Essa coleção, bem como outros volumes que não integravam a Brasiliana, atualmente pertencem à família do colecionador.

Ao falar sobre Mindlin, Cristina o define como um “cara fácil, divertido, bem-humorado, que tratava todas as pessoas exatamente da mesma forma”. Destaca a sua generosidade, principalmente por acreditar que o conhecimento deve ser plenamente compartilhado e por até abrir as portas de sua casa para tal, o que diz ser raro dentre os bibliófilos. Conta que às vezes o colecionador separava até dez títulos para que ela levasse para casa e lesse em um final de semana –algo do qual não dava conta, evidentemente. Em uma frase que parece lapidar, ela lembra que Mindlin “queria inocular o vírus da leitura em qualquer pessoa que se aproximasse dele”.