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Sucesso na internet, Caio Fernando Abreu volta com enxurrada de livros

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

17/01/2015 07h00

“Sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor? Pois se eu me comovia vendo você, pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo, ah meu Deus… como você me dói vezenquando. Eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno, bem no meio duma praça, então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta, mas tanta coisa que eu vou ficar calado um tempo enorme, olhando você, sem dizer nada, olhando e pensando: meu Deus, mas como você me dói vezenquando!”

O trecho acima faz parte do conto “Harriet”, do livro “O Ovo Apunhalado”, de Caio Fernando Abreu, um dos escritores brasileiros mais citados na internet. Muito mais do que as belas frases compartilhadas em redes sociais, o autor escreveu diversos contos, romances, poemas e peças de teatro, que retornam às livrarias brasileiras em uma enxurrada de publicações –ótima oportunidade para quem deseja conhecer ou se aprofundar na obra do gaúcho, que morreu em 1996, aos 47 anos, por problemas decorrentes da Aids.

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O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, em foto de 1991
Imagem: Paulo Giandalia/Folhapress

No final do ano passado, a editora Nova Fronteira já havia colocado nas prateleiras os títulos “Limite Branco”, “Pequenas Epifanias”, “Os Dragões Não Conhecem o Paraíso”, “Onde Andará Dulce Veiga?”, “Pedras de Calcutá” e três volumes de “O Essencial de Caio Fernando Abreu”, correspondentes às décadas de 1970, 1980 e 1990. Ainda neste ano, serão editados “Morangos Mofados”, “Teatro Completo” e uma adaptação para quadrinhos inspirada em “Onde Andará Dulce Veiga?”, assinada por Arnaldo Branco e André Freitas. 

Outra editora que aposta no autor em 2015 é a L&PM, que relançará “Ovelhas Negras”, “Triângulo das Águas”, “O Ovo Apunhalado” e “Fragmentos”, além de um volume reunindo as últimas três obras de Abreu.

Palavras que falam à alma

A citação que abre este texto foi escolhida por Paula Dip, amiga do escritor e autora de “Para Sempre Teu”, biografia dele –veja abaixo um bilhete que ele escreveu para ela, num momento decisivo para que a amizade acontecesse. Paula aponta Abreu como um dos escritores brasileiros mais importantes dos anos 1970 e 1980. “Eu não o considero somente um clássico apenas porque escrevia bem, amava as palavras e buscava a forma perfeita, mas sim porque sua literatura tocava em questões humanas universais, que falam diretamente à nossa alma. Escrevia principalmente sobre o amor e a falta dele. Dizia que, no fundo, somos todos iguais.”

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Bilhete escrito por Caio Fernando Abreu para Paula Dip, em 1979
Imagem: Reprodução

Bruno Polidoro, que, junto de Cacá Nazario, produziu e roteirizou o documentário “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes”, sobre Abreu, também fala do dom que os escritor tinha de abordar as questões humanas. “Dentre diversos pontos, o que sempre me tocou na obra do Caio foi a sua contemporaneidade, sua capacidade de refletir sobre nossos sentimentos mais íntimos, de dor, solidão, amor. A obra dele cria uma intimidade com o leitor, como se cada livro fosse escrito para cada um de nós. Em tom confessional, sinto quase como se Caio soubesse o que sinto no momento, e seus textos fossem cartas íntimas para mim.” E acrescenta: “Além disso, a obra, assim como a vida dele, é marcada pelo sentimento de inquietude, numa busca incansável pelo novo, pelo deslocamento, pelos encontros”.

Essa cumplicidade com o leitor e a busca por novas experiências ajudam a explicar por que trechos de suas narrativas têm presença constante em redes sociais, onde Abreu faz sucesso dentre pessoas que, em muitos casos, sequer eram nascidas quando o autor morreu. “As questões levantadas [por Abreu] são contemporâneas, permanecendo diretamente ligadas às questões da vida atual”, diz Polidoro. Já Paula encara a leitura da obra do escritor como “um mergulho surpreendente. Ele fala das nossas emoções mais fundas, faz o retrato de uma época, tem um texto impecável, de uma entrega única. É apaixonante”.

Representante de uma geração

Paula lembra que jamais viu alguém praticar tanto a escrita como Abreu, seja na profissão de jornalista –que detestava, mas servia para garantir o sustento--, seja fazendo literatura. Para tal, aproveitava-se do que estivesse à mão, fosse a máquina de datilografar, fosse um guardanapo qualquer. Também gostava de escrever em seu diário e de enviar cartas aos amigos e à família praticamente todos os dias –que também já renderam livro. “Nunca vi ninguém tão comprometido e apaixonado pela palavra escrita”, rememora a biógrafa.

Pessoalmente, a amiga lembra que Abreu tinha um humor que oscilava entre o divertido e o extremamente triste, beirando uma “depressão quase profissional”. Segundo ela, o escritor também sabia cativar as pessoas e cultivar amizades, mas, por outro lado, era “eficiente” em arranjar inimigos. “[Ele] dizia tudo o que pensava e quando queria, sabia ser crítico, demolidor”, conta. Paula também se recorda de que o amigo apreciava observar as pessoas nas ruas, a arquitetura das cidades e sair à noite. Vivia com problemas financeiros, pois gastava o que ganhava com viagens, jantares, presentes e flores. “[Caio] cortejava as amigas e os amigos com um carinho ímpar. E era muito ciumento”, diz Paula. De todos esses altos e baixos, o autor tirava as histórias presentes em sua obra.

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Caio Fernando Abreu e a amiga Paula Dip, em foto tirada em 1982
Imagem: Arquivo pessoal

Títulos de Abreu já foram traduzidos para os idiomas inglês, espanhol, francês, holandês,   italiano e alemão. “Morangos Mofados”, reunião de contos lançada em 1982, tornou-se seu livro mais vendido e reeditado –e é apontado como um dos favoritos tanto de Paula quanto de Polidoro, que o destaca “pela força de uma época, pela transgressão, pelo grito que pulsa em cada uma das páginas”.

Apesar das dezenas de livros publicados, provavelmente a obra de Abreu não está encerrada. A biógrafa conta que, ao morrer, o escritor deixou ao menos meia dúzia de títulos inacabados e alguns projetos em seus diários que ainda não chegaram ao público, além de poemas inéditos. Paula aposta que o amigo “será cada vez mais reconhecido. Ele sempre esteve à frente do seu tempo. Foi um ‘popstar’, é o principal representante da literatura urbana dos tempos do ‘sex, drugs and rock and roll’. As novas gerações o adoram”.

Outra citação

Se as novas gerações o adoram, voltemos às citações. Paula salienta que nem todos os textos atribuídos ao autor que circulam na internet são realmente dele, mas destaca que Abreu era “tão preciso em seus escritos que suas citações são quase aforismos, pura filosofia”. Também entende que ler apenas trechos isolados é muito pouco para conhecer o escritor, recomendando que as pessoas busquem os textos de onde os trechos citados foram retirados, até para que possam contextualizá-los nos originais e entendê-los com o sentido proposto.

Em todo caso, fica aqui mais uma citação de Abreu, esta escolhida por Polidoro, que a retirou do conto “Natureza Viva”, presente em “Morangos Mofados”: "Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro, sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur no canto da sala depois de apagar a luz mais forte no alto. E finalmente começas a falar."