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Chico Buarque revela obsessão em livro que mistura ficção e autobiografia

Pablo Miyazawa

Do UOL, em São Paulo

17/11/2014 13h50

A carreira do Chico Buarque escritor é ainda mais bissexta do que a do Chico Buarque músico. Desde 1991, ele publicou apenas cinco romances, incluindo o recém-lançado “O Irmão Alemão” (Companhia das Letras). Já como cantor e compositor, ele é apenas um pouco mais prolífico: tem lançado uma média de um disco a cada cinco anos desde o início deste século.

Chico completou 70 anos em junho passado e pode se dar ao luxo de fazer o que bem entende, no ritmo que quiser. E ele produziu “O Irmão Alemão” durante um retiro em Paris, utilizando como base uma obscura história pessoal. O que se lê no livro pode soar mais como verdade ou ficção, dependendo do nível de conhecimento do leitor sobre a trajetória da virtuosa família Buarque de Hollanda. Não fica claro em nenhum momento quais dos fatos relatados realmente aconteceram e quais são meros frutos da imaginação do escritor. Chico não nos facilita, e é aí que está a maior graça.

O estilo literário de Chico Buarque não é de pronto digerível e parece ecoar a sua maneira toda particular de escrever música. Ele não faz questão de desamarrar a compreensão para um desbravador iniciante em sua obra, da mesma forma que suas canções mais recentes não podem ser consideradas de apelo popular. É um real desafio enfrentar o fluxo de pensamento solto, a raridade de parágrafos e o pouco apego à cronologia na qual a narrativa se estabelece. Jamais sabemos se o que se segue está mesmo ocorrendo ou se é tudo divagação da mente criativa e nem sempre confiável do narrador-protagonista –no caso, ele mesmo, ou uma versão romantizada de Francisco de Hollanda, ou de Hollander, como ele rebatizou a própria família em “O Irmão Alemão”.

"O Irmão Alemão", romance de Chico Buarque - Reprodução - Reprodução
Capa de "O Irmão Alemão", romance de Chico Buarque
Imagem: Reprodução

No livro, conhecemos a trajetória de Francisco, o filho de um historiador (Sergio de Hollander), que descobre que o pai teve um outro filho antes do casamento, na época em que morou em Berlim. Ao longo das décadas, acompanhamos a busca obcecada dele pelo paradeiro do irmão perdido, de nome Sergio Ernst, fazendo uso de pistas largadas entre páginas de livros velhos, fotos, documentos e suposições bem elaboradas por ele próprio --um homem nada especial em eterna busca por uma razão de existir. Diferente do Chico real, Francisco é um herói de poucos talentos, o caçula ignorado pelo pai, obscurecido por um irmão mais bonito e popular e desencontrado diante de amores perdidos, amigos desaparecidos e a repressão do regime militar.

O Francisco real e o fictício

Não é preciso conhecer muito sobre a vida de Chico Buarque para perceber que muitos dos fatos que ele descreve talvez tenham acontecido em sua vida. O pai dele, o intelectual Sergio Buarque de Hollanda, realmente viveu na Alemanha durante a década de 1930 e, de fato teve, um affair que resultou em um filho que jamais conheceu pessoalmente. O tema não era exatamente um tabu familiar, mas jamais ficou esclarecido por completo para Chico, que não desvendou o mistério enquanto o pai ainda era vivo. Como que para expurgar demônios incômodos, ele se inspirou nessa questão tão pertinente para escrever aquele que é o romance mais autobiográfico de sua vida --ainda que somente no epílogo ele elabore sobre o alcance da veracidade daqueles fatos.

Notavelmente, o Francisco de “O Irmão Alemão” carrega semelhanças demais com o autor que o inventou. O Chico real também viveu em São Paulo nas décadas de 1940 e 50, quando o pai foi diretor de museu, e chegou a furtar carros por diversão na adolescência –a prática lhe proporcionou uma prisão quando tinha 17 anos. Ambos frequentavam a boemia paulistana caracterizada pelo mítico bar Riviera, davam calotes em taxistas, envolveram-se com o movimento estudantil e presenciaram de perto o golpe militar de 1964. As coincidências talvez parem por aí, mas é até saboroso mergulhar em “O Irmão Alemão” e imaginar que Chico está narrando suas próprias memórias pessoais, com riqueza de detalhes e revelações intimas que constrangem, chocam e emocionam. A ideia de ser impossível diferenciar a realidade da ficção só torna mais interessante o trabalho de imaginação e entrega pessoal do escritor, assim como a nossa experiência de lê-lo.

Investigação

A base para “O Irmão Alemão” não foi apenas a curiosidade aguda e sentimental de Chico Buarque pelo parente estrangeiro. Ajudaram bastante alguns documentos guardados por sua mãe, Maria Amélia, que, se não confirmaram o paradeiro de Sérgio Ernst, deram as pistas que faltaram para Chico se aproximar de seu objetivo. Não haveria como concluir a produção do romance se a verdade sobre o destino do irmão não viesse à tona, o que acabou surgindo graças a uma investigação local encomendada a amigos historiadores. Mas, assim como os dois Chicos levaram quase 50 anos para saber a verdade, o ideal é que o leitor nada saiba antes de começar a ler “O Irmão Alemão”.

Não é apenas um drama psicológico com requintes de contos de detetive que Chico Buarque nos proporciona. É possível experimentar junto a ele a angústia do não saber e a emoção do enfim descobrir após tantos anos de escuridão. Mesmo que o fictício impere sobre o autêntico, fica claro no desfecho que a revelação veio aos dois Franciscos com um alívio dolorido e arrebatador. Ao descarregar essas emoções tão pessoais pelas páginas de “O Irmão Alemão”, o artista generosamente e de coração aberto nos presenteia com um episódio inestimável de sua já fascinante história.

"O Irmão Alemão"
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 240
Preço: R$ 39,90
 

Chico Buarque lê trecho de "O Irmão Alemão"