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Avaliado em R$ 70 mil, fardão de Ferreira Gullar está "80% pronto"

O poeta e escritor Ferreira Gullar foi eleito para ocupar a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras - Erbs Jr./Folhapress
O poeta e escritor Ferreira Gullar foi eleito para ocupar a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras Imagem: Erbs Jr./Folhapress

Fabíola Ortiz

Do UOL, no Rio

28/10/2014 05h00

No princípio de outubro, dias antes de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, Ferreira Gullar, 84, resolveu se antecipar. Ciente de que já era o favorito para ocupar a cadeira de nº 37 da ABL, procurou o alfaiate oficial da instituição para tomar suas medidas. Ninguém se torna imortal sem seu fardão, o suntuoso traje inspirado nos uniformes de reis e membros da Academia Real Francesa que os acadêmicos precisam vestir para atender às sessões solenes da entidade.

“Acertei com o alfaiate para fazer logo e evitar na última hora ficar correndo”, revela ao UOL o poeta maranhense que foi confirmado para a vaga em 9 de outubro e espera ser empossado oficialmente até o final deste ano – a data ainda não foi confirmada pela ABL. “Os próprios acadêmicos já tinham manifestado a intenção de votar em mim. Sabia que seria eleito e uma semana antes já fui adiantar e tirar as medidas. Tem que fazer bem feito e bonito. É uma coisa solene. São várias provas para ficar correto e, além disso, tem que ter o bordado em ouro”, esclarece Gullar.

Por conta do governo
O fardão é um uniforme que inclui casaca, calça, espada e chapéu de veludo negro com plumas brancas, feitos de cambraia inglesa verde, decorados por bordados à mão caprichados feitos com fios de ouro. Desde 2006, após a morte do alfaiate Francesco Rossalba, os fardões da Academia passaram a ser confeccionados exclusivamente por Diógenes Cardoso, 72, em um ateliê no centro do Rio de Janeiro. Os uniformes chegam a custar R$ 70 mil e costumam ser presenteados aos escritores pelo governo do Estado ou do município do acadêmico recém-eleito.

A conta da vestimenta de Gullar será paga pelo governo do Maranhão, por iniciativa da governadora Roseana Sarney, que teria ligado para o poeta oferecendo-se para cobrir os custos. “Aqui no Rio, o prefeito Eduardo Paes também me ligou dizendo que fazia questão de pagar, mas eu falei que a Roseana já tinha se antecipado. Quando ele soube [da votação] ligou para mim, mas eu disse: ‘Você chegou atrasado’”, lembrou Gullar, em tom de brincadeira.

Entre outros, a prefeitura do Rio já pagou fardões para imortais como o presidente Fernando Henrique Cardoso, eleito membro da Academia em 2013, e Paulo Coelho, nomeado em 2002.


Pessoais e intransferíveis

O alfaiate oficial da ABL é reservado ao comentar seu trabalho. Ele não é autorizado pela instituição a dar entrevistas ou prestar qualquer informação, tudo é mantido sob sigilo. Um segredo muito valioso.

“Eu sou o alfaiate exclusivo dos imortais da ABL. Mas os imortais não são os mais famosos clientes que eu tenho, tem uns que nem posso falar", comentou Diógenes Cardoso em uma breve conversa telefônica com o UOL. Em sua página na internet, Cardoso se apresenta como um importante nome da moda masculina, bastante requisitado por clientes que buscam roupas exclusivas e “responsável pela elegância dos homens do mundo dos negócios, advogados, políticos, artistas”.

Ocupado com a lista de convidados para a sua posse, que beira 200 nomes, Gullar revela que seu traje está “80% pronto”, mas ainda não viu os enfeites e os ricos detalhes que fazem o fardão tão especial. “Na última prova que fiz, vi que estava bastante adiantado, mas ainda tem que fazer outras provas para ajeitar”, diz o poeta, lembrando que, recentemente, o alfaiate chegou a brincar com as suas medidas, por ser magro e esbelto. “‘Suas medidas são raras’, ele me disse. Eu sou, sem dúvida alguma, o mais magro de todos os acadêmicos. Realmente sou pele e osso”, diverte-se.

Feito sempre sob medida para cada escritor, o fardão é intransferível e, mesmo após o falecimento, a família do imortal preserva o uniforme em casa.

A família do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro ainda guarda com muito carinho o fardão do autor de “Viva o Povo Brasileiro”, morto no dia 18 de julho deste ano. A viúva Berenice Ribeiro refere-se ao uniforme como uma verdadeira relíquia. “Está guardado aqui em casa, preservado e com a capa. É uma lembrança dele, de uma glória que ele teve. É uma honraria ter o fardão, um reconhecimento, uma relíquia da família”, comentou Berenice.

Paulo Coelho com fardão da ABL - Ana Carolina Fernandes/Folhapress - Ana Carolina Fernandes/Folhapress
O escritor Paulo Coelho posa com fardão da ABL e a espada citada em "Diário de um Mago"
Imagem: Ana Carolina Fernandes/Folhapress
Afastado do Rio de Janeiro, onde fica a sede da Academia, o escritor Paulo Coelho fez seu fardão atravessar um oceano para ficar a seu lado. “O fardão cruzou o oceano de navio junto com todo meu material e, em breve, será exposto aqui na sede da minha Fundação em Genebra. A inauguração será em fevereiro”, adiantou ao UOL o ocupante da cadeira 21, que atualmente vive na Suíça.

Coelho ainda se lembra de uma curiosidade: a espada que usa com seu conjunto é a mesma cuja busca ele descreve no livro “O Diário de um Mago” (1987).

Não é fácil tornar-se um imortal. O estatuto da ABL estabelece que, para alguém candidatar-se a um membro vitalício da “Casa de Machado”, é preciso ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário.

Para a sua posse, provavelmente em dezembro, Gullar terá que elaborar um discurso em que deve referir-se aos ocupantes anteriores da cadeira 37, como seu antecessor Ivan Junqueira, morto em 3 de julho deste ano. Ilustres pensadores da história brasileira já sentaram na cadeira que agora será de Gullar: o pernambucano filólogo e poeta José Júlio da Silva Ramos, que fez parte do grupo que fundou a ABL e escolheu como patrono de sua cadeira o poeta português Tomás Antônio Gonzaga; além de Alcântara Machado, Getúlio Vargas, Assis Chateaubriand e João Cabral de Melo Neto.