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Em "A Velha", procurar sentido nos detalhes pode ser uma viagem sem volta

Katia Calsavara*

Especial para o UOL

31/07/2014 13h20

"Para mim, todo teatro é dança". A frase do encenador texano Robert Wilson --ou apenas Bob Wilson-- poderia resumir o que se vê em "A Velha" (The Old Woman). O espetáculo marca a quarta parceria do diretor com o Sesc-SP desde 2012 --as outras foram "A Última Gravação de Krapp", "Lulu", "A Ópera dos Três Vinténs" e "A Dama do Mar"-- e traz no elenco o ator norte-americano Willem Dafoe e o bailarino russo Mikhail Baryshnikov.

A curiosidade para ver essa dupla quase improvável em cena lota o Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros (com 1.010 lugares) desde 24 de julho. Boa parte do público é formada por estudantes de teatro, atores, diretores, bailarinos e outros profissionais das artes cênicas e visuais. Não só pelo reconhecido talento dos dois, mas principalmente porque ver uma obra de Wilson, um dos maiores encenadores do mundo, virou quase uma lição de casa.

O uso da luz e os cenários, o trato preciso dos movimentos aliados à música, a variedade de linguagens artísticas e o desenho de cada quadro são elementos que ele domina desde os anos 1960. E, muitas vezes, sem grandes novos voos. Mas o público leigo consegue embarcar na viagem de Wilson, onde uma frase pode ser repetida dezenas de vezes em uma mesma cena na qual nada acontece? Algumas senhorinhas atraídas para ver Baryshnikov dormem na plateia e não é raro ver desavisados que saem com cara de "o que foi isso?" ou comentando "estranho, né?".

Fato é que a experiência de ver uma obra de Wilson se assemelha muito a um espetáculo de dança, no qual cada passo dado é ensaiado à exaustão, quase milimétrico. Em "A Velha", a precisão técnica da equipe que dispõe os elementos no palco entre uma cena e outra é determinante para que todo o jogo de luz e sombras funcione e, finalmente, a atmosfera seja criada com a junção da música, dos atores e dos cenários minimalistas que aparecem e desaparecem. É uma dança pura.

Muito se deve também ao carisma de Misha (apelido antigo do lendário bailarino) e Dafoe. Logo na entrada, eles apresentam um pouco do que está por vir. O primeiro, com pequeninos e até ingênuos passos de dança, mostra seu domínio de corpo, leve, pronto, capaz de executar a qualquer momento o que se quiser dele. Dafoe e seu sorriso largo instauram o registro cômico e acompanha os mesmos passos com desenvoltura. Juntos, eles são complementos um do outro, sem distâncias, certamente um resultado de horas e horas de sala de ensaio.

É bonito ver como artistas já tão tarimbados e com extensa quilometragem de carreira continuam absolutamente disponíveis para encarar experiências artísticas desafiadoras. Dafoe, aos 59 anos, já atuou em mais de 80 filmes em sua carreira e é um dos integrantes do The Wooster Group, coletivo de teatro experimental nova-iorquino. Misha, aos 66, marcou a história da dança com sua técnica e presença de palco e desde 2005 dirige o Baryshnikov Arts Center (BAC), que incentiva artistas do mundo todo.

Ambos contam que a experiência de trabalhar com Bob Wilson, conhecido por deixar atores imóveis durante horas apenas para fazer seus infindáveis testes de luz, não é nada fácil. Dafoe já havia feito seu début em "Vida e Obra de Marina Abramovic", em 2012, e diz estar sempre em busca de fazer um trabalho original, misterioso.

O texto de "A Velha" é do russo Daniil Kharms (1905-1942) e foi adaptado por Darryl Pinckney. Kharms é considerado precursor de Ionesco e Beckett pelo absurdo e crueldade presentes em sua obra, marcada fortemente pela revolução russa. Para ele, só o nonsense fazia sentido na vida. Na trama, um escritor perturbado é assombrado pela figura de uma velha mulher. O escritor é vivido justamente pela figura duplicada de Dafoe e Misha, que fazem uma daquelas típicas parcerias de clowns patéticos que não existe um sem o outro.

Mas a história pouco importa nesse balé teatral de Bob Wilson. É necessário saber apenas que se está diante de um espetáculo nada realista, em que procurar sentido nos mínimos detalhes pode ser uma viagem sem volta.

Tal como na dança, é preciso se abrir à experiência de divagar, nesse caso quase por um sonho, e se deixar embalar na atmosfera sugerida por móveis que flutuam, palhaços ora estridentes ora melancólicos e pela quebra de ritmos que pode acordá-lo de um suspiro. Seja para os iniciados, seja para os novatos, a arte de Bob é uma experiência sensorial. Pode ser enfadonha e sonolenta, sem dúvida, mas também pode ser alegre e magistral --e só depende da disponibilidade de quem o  assiste.

* Katia Calsavara é bailarina, jornalista e atriz da companhia Os Satyros