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"No Brasil, há o humor AM e DM: antes e depois do Millôr", diz ex-casseta

Reinaldo e Hubert, humoristas do extinto programa de TV "Casseta & Planeta" - Montagem UOL/Divulgação
Reinaldo e Hubert, humoristas do extinto programa de TV "Casseta & Planeta" Imagem: Montagem UOL/Divulgação

Orlando Pedroso

Do UOL, em São Paulo

30/07/2014 06h00

"Millormaníacos". Assim a curadoria da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) apresenta Reinaldo e Hubert, membros da segunda geração do "Pasquim" e discípulos de Millôr Fernandes, cartunista carioca morto em 2012, que terá sua vida e obra celebradas no evento a partir desta quarta-feira (30), na cidade histórica de Paraty (RJ). Mais conhecida por seu trabalho à frente do humorístico "Casseta & Planeta", a dupla irá bater um papo com Jaguar, outro grande parceiros de Millôr, na mesa de abertura da Flip, que já tem ingressos esgotados.

O cartunista e blogueiro do UOL Orlando Pedroso queimou largada e conversou com Reinaldo e Hubert dias antes do início da festa. Confira a seguir os melhores momentos:

UOL – De que forma o trabalho do Millôr influenciou o trabalho de vocês?
Hubert - O Millôr escreveu na "Veja" durante anos e eu adorava ler seus textos e ver seus desenhos. Também acompanhava ele no "Pasquim". Com 12 ou 13 anos comprei o livro "30 Anos de Mim Mesmo", uma seleção do trabalho dele desde o "Cruzeiro" e, por muito tempo, foi meu livro mais manuseado, tanto que a capa acabou rasgando e eu tive que encadernar. O Millôr  foi a maior admiração por um artista que eu tive na vida. Acho que a maior influência foi a decisão, em determinado momento da vida, de ser humorista também.

Reinaldo - O Millôr foi fundamental. Quando eu era garoto via aquelas páginas dele no "O Cruzeiro" e achava impressionante... Aquela mistura de desenhos e textos, cada semana com estilos e arrumações diferentes (eu não sabia ainda o que era diagramação) era muito estimulante. Dava vontade de sair fazendo aquilo também. E esse tipo de influência continuou pela minha vida inteira... "Pif-Paf", "Pasquim" etc. Ele passava aquela sensação de liberdade total que é a base do humor com H maiúsculo.

Vocês fazem parte de uma segunda geração de humoristas do "Pasquim". Como chegaram lá?
Hubert - O pai de um amigo meu, o jornalista Luiz Lobo, que era amigo da galera do "Pasquim" me levou lá para mostrar meus cartuns. Tinha 14 anos.

Reinaldo - Cheguei a pé. Eu morava perto da redação do "Pasquim", que era na ladeira Saint Roman, em Copacabana. Meus irmãos me estimularam a ir lá mostrar meus desenhos. Nunca tinha publicado nada, mas dei sorte. Jaguar e Ziraldo me receberam e gostaram muito. Publicaram logo uma página inteira e eu passei a mandar cartuns toda semana. Depois comecei  a frequentar a redação, fazer ilustrações etc. Mais tarde, fui um dos editores... Comecei em 1974 e só saí de lá em 1985.

A produção do Millôr é absurda em volume e qualidade. Onde vocês o colocariam na história do humor no Brasil?
Hubert - Acho que no Brasil existe o humor AM (Antes do Millôr) e o humor DM (Depois do Millôr).

Reinaldo - Se fizermos, em desenho animado, um gráfico da história do humor no Brasil, aquela linha vermelha que estava indo reta e lenta lá na parte de baixo,  nos anos 50 e 60, faria um rápido zig-zag bem para o alto e continuaria lá em cima até hoje... Esse zig-zag para o alto é o "efeito Millôr".

E onde o humorista e o intelectual se encontravam?
Hubert - No começo da carreira, o Millôr fazia  um humor mais preocupado em fazer rir. Com o tempo foi mudando para um tipo de humor que faz pensar. Um intelectual que fazia humor ou um humorista intelectual? Sinceramente não sei. Aliás, a melhor definição era o seu slogan "enfim um escritor sem estilo".

Reinaldo - Ele nem gostava muito de ser chamado de intelectual, dizia que quem tem "obra" é pedreiro, essas coisas... Uma atitude típica de humorista, que não gosta de se levar muito a sério. Mas é claro que, mesmo sendo engraçado, ele era mais profundo que muito intelectual acadêmico e metido a importante.

Vocês tinham relações pessoais com ele? Achavam ele um cara difícil?
Hubert - Quando já era um colaborador mais regular do "Pasquim", com uns 19 ou 20 anos, o Millôr, através do Jaguar, me pediu para editar, diagramar e ilustrar artigos já publicados na "Veja" para um jornal de Portugal. Fiz esse trabalho pra ele por dois anos e ele sempre me tratou com respeito e carinho. Mas não posso dizer que realmente conheci o Millôr. Conversei  algumas vezes com ele, quer dizer, fiquei ouvindo ele falar sem parar, sempre muito inteligente e dizendo coisas brilhantes e engraçadas .

Reinaldo - Eu não era tão íntimo do Millôr pra poder achar a convivência difícil. Comigo ele sempre foi gente boa. Sempre me deu força e até escreveu a contracapa do meu primeiro livro.

O Millôr conseguiu criar um certo folclore em torno de si. Frescobol, corridas na praia, intransigência com políticos e com publicações. O quanto disso vocês acham verdade?
Hubert - O personagem que ele criou para si era ele mesmo .

Reinaldo - Acho que é tudo verdade, menos o lance de que ele inventou o frescobol... Deve ter sido uma criação coletiva. Mas é claro que ele foi um dos primeiros a praticar o esporte e um dos que mais ajudou a divulgar.

Qual livro dele vocês destacariam?
Hubert - "30 Anos de Mim Mesmo", o "Livro Vermelho dos Pensamentos do Millôr" e o livro de desenhos dele que foi editado pelo próprio filho, Ivan Fernandes.

Reinaldo - Meu livro preferido e o que mais me marcou foi o "30 Anos de Mim Mesmo", uma antologia que ele lançou nos anos 70, com várias explicações e comentários sobre muitos dos textos.

Millôr sempre teve seu trabalho reconhecido. O que acrescenta ele estar sendo homenageado num evento como a Flip?
Hubert - Acho que a obra do Millôr é universal veio pra ficar. Sua obra é de alto nível em  todas as suas versões: jornal, cartuns, teatro, traduções etc. Não conheço frasista melhor que ele. Perto dele Oscar Wilde e Bernard Shaw ficam no chinelo . Millôr nunca perdeu seu prestígio mas nos últimos anos pouco se falava dele. A homenagem da Flip vem em boa hora.

Reinaldo - Vai ser bom para mostrar que literatura boa não tem que ser necessariamente grave, solene e "séria", no mau sentido. E o fato do Millôr ser um escritor-desenhista mostra que a combinação de texto e desenho é uma forma de linguagem com muitos recursos e pode muito bem estar presente numa festa literária.

Ele era ateu e não acreditava na vida eterna. Se ele estivesse errado e sentado numa nuvenzinha vendo esse movimento todo, o que vocês acham que ele diria?
Hubert - Acharia ridículo, certamente.

Reinaldo - Eu sei o que diria. Aliás, ele não diria, porque ele não estava errado: neste momento ele não está sentado numa nuvenzinha, ele está bem morto. O que eu sei é que ele não dava a menor importância ao que diriam dele depois de morto... Para nós, o importante é que a "obra" do "pedreiro" Millôr está aí...