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Nacionalista, Suassuna preferia novelas a enlatados norte-americanos

Rodrigo Casarin

Do UOL, em São Paulo

23/07/2014 18h20

"João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é que eu faço no mundo sem João? João! João! Não tem mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre".

Suassuna, o Ariano, tão escritor, tão poeta, morreu também. Encontrou a Caetana, como costumava chamar a morte, igual faziam no sertão da Paraíba e de Pernambuco. Suassuna ficou conhecido nacionalmente por trabalhos como "O Auto da Comparecida", de 1955. É desse texto, um dos mais populares do teatro brasileiro, que vem o lamento de Chicó pela morte de seu amigo João Grilo. A história, que virou minissérie na TV Globo em 1999 e foi adaptada para o cinema em 2000, é uma comédia dramática na qual dois pobres sertanejos nordestinos, um mentiroso e o outro covarde, valem-se de pequenos golpes e biscates para conseguir tocar a vida.

Traduzido para diversas línguas --como alemão, espanhol, inglês e até polonês-- Suassuna construiu uma obra que mescla características do modernismo, simbolismo e barroco com traços típicos da cultura nordestina, como a literatura de cordel. Aliás, elementos da região, como a improvisação, são bastante comuns em seus textos. O nordeste era seu norte, tanto que foi um dos criadores, em 1970, do Movimento Armorial, que mistura literatura, dança, teatro, música e outras manifestações artísticas para se fazer arte erudita a partir da cultura da região.

A região era o cenário preferido para sua escrita, que atingiu excelência digna de elogios como o de Millôr Fernandes, que, escrevendo para o Caderno de Literatura Brasileira que homenageou Suassuna, considerou que "A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta", de 1971, está "facilmente entre os dez maiores romances brasileiros, incluindo aí Guimarães Rosa e excluindo Machado de Assis". A relevância de seu trabalho, inclusive, fez com que a Comissão de Relações Exteriores do Senado indicasse o Suassuna ao Nobel de Literatura, em 2012 --quando o Prêmio foi para o chinês Mo Yan.

Contudo, caso fosse premiado pela Academia Sueca, talvez o escritor não desse a importância que outros dão à honraria. Seu interesse estava realmente voltado para o Brasil e para as questões do país, não para o que acontecia no exterior. Reclamava da imposição da "arte do primeiro mundo", clamava por uma resistência maior da cultura nacional e não se importava em ser eventualmente chamado de arcaico por isso.

Preferia as novelas brasileiras a qualquer enlatado norte-americano. Indignava-se com a elite que queria transformar o Brasil em algo parecido com os Estados Unidos; queria que o Brasil fosse o próprio Brasil, que preservasse suas características e cultura. Admirava Lampião --sabia que ele tinha sido um homem cruel e sanguinário, mas via nele uma grande alma e um personagem trágico-- e ainda mais Maria Bonita, a mulher que se apaixonou pelo cangaceiro por ele ser, ao seu modo, um rei.

Mas admirava sobretudo a Jesus Cristo, seu maior herói. Suassuna era um católico fervoroso. Não aceitava as teorias de Charles Darwin, não acreditava que a inteligência humana pudesse ter evoluído do macaco ou de qualquer outro bicho. Para fundamentar sua posição, abria mão da "Divina Comédia", de Dante Alighieri, e da "Nona Sinfonia" de Beethoven e se utilizava de um pregador de roupas. Dizia que um primata poderia trabalhar 500 milhões de anos e não faria algo como aqueles dois pedaços de madeira com um arame no meio. Acreditava que inteligência humana só era possível por conta de uma fagulha divina e que, para crer na Teoria da Evolução, era preciso ter mais fé do que para crer na Bíblia.

Vida sertaneja

É da infância que Suassuna carregou a paixão pela literatura. Passava a manhã na escola, chegava em casa, almoçava, pegava um livro e outro mundo se abria. Nasceu em João Pessoa, em 1927, mas morou durante seus primeiros anos no sertão da Paraíba. Tinha em casa uma excelente biblioteca deixada pelo pai, João Suassuna, político assassinado no Rio de Janeiro em 1930 --tragédia que ressoaria na obra do escritor.

Das estantes da casa sertaneja que tirou títulos como "Os Três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas, e "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Quando discursou ao assumir a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras --foi eleito para imortal em 1989--, disse que, ao escrever, era aquele mesmo menino que lia na biblioteca de João.

A morte do pai deixou Cássia Vilar, a mãe de Suassuna, viúva aos 34 anos. Coube a ela assumir totalmente a família e cuidar da criação do escritor e de seus oito irmãos. Não permitia que os filhos se queixassem da vida ou lamuriassem a perda de João --ainda que ela mesma tenha guardado luto para o resto de seus dias.

Já na adolescência, Suassuna teve contato com a obra do russo Fiódor Dostoiévski. Ao ler "Os Irmãos Karamázov", deparou-se com a clássica frase "se Deus não existe, tudo é permitido" e passou a olhar para o divino de outra maneira, pois entendia que nem tudo no mundo deveria ser lícito. Nesse sentido, encontrou apoio ao conhecer os trabalhos de Miguel de Unamuno, escritor espanhol, que considerava um católico heterodoxo, como ele.

Sua família se mudou para o Recife em 1942 e, em 1946, após terminar o ginásio, Suassuna entrou na faculdade de direito --não por levar jeito para as leis, mas por não saber muito bem fazer contas, o que lhe impedia de ser engenheiro, e por não apreciar abrir barrigas de lagartixas, um indício de que não serviria também para médico.

No curso, conheceu Hermilo Borba Filho, com quem criou o Teatro do Estudante de Pernambuco, onde encenou suas primeiras peças, como "Cantam as Harpas de Sião" e "Homens de Barro". Depois de formado, dedicou-se por pouco tempo à advocacia. Já em 1956 largou a profissão para virar professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. Em nenhum momento deixou o teatro de lado. Após algum sucesso com textos como "O Castigo da Soberba" e "O Rico Avarento", conseguiu que "O Casamento Suspeitoso" fosse encenado em São Paulo pela Companhia Sérgio Cardoso.

Em 1957, casou-se com Zélia de Andrade Lima, com quem teve seis filhos. Entre o ano do casório e 1959, emplacou "O Santo e a Porca", "O Homem da Vaca", "O Poder da Fortuna" e "A Pena e a Lei", que viria a ser premiada dez anos depois no Festival Latino-Americano de Teatro. Também ao lado de Borba Filho fundou o Teatro Popular do Nordeste, onde montou "A Farsa da Boa Preguiça" e "A Caseira de Santa Catarina".

Pacto com Deus

O teatro não foi a sua frente exclusiva na literatura. Escreveu os romances "A História do Amor de Fernando e Isaura" e "História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana" --que chamava de "romance armorial-popular brasileiro" e deixava claro como longos títulos lhe agradavam--, além do já citado "Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta".

Suassuna tinha uma relação romântica com seu trabalho de escritor. "Eu encaro a literatura como um esforço. E por isso me rebelo contra as pessoas que querem olhar o livro como um objeto de mercado, porque pode ser vendido, mas não é isso o que mais importa --pelo menos, não no meu caso. O que eu considero fundamental é o ato de escrever. Se, ao publicar o livro, eu tiver êxito junto ao público, tanto melhor. Mas eu digo a vocês com toda a sinceridade, não estou fingindo, não: para mim, o fundamental é o ato de escrever", disse certa vez em uma entrevista.

Manteve-se produzindo até o final de sua vida. Em que pese alguns problemas de saúde, como os dois infartos e um aneurisma cerebral que sofreu em 2013, sua cabeça parecia continuar excelente --tanto que dizia ter uma memória de cachorro vingativo. Entretanto, era um outro animal com outra característica que batizaria sua próxima obra, "O Jumento Sedutor" (uma alusão a "O Asno de Ouro", de Lucius Apuleio), na qual trabalhava há mais de três décadas.

Ela faria parte de uma série de sete volumes que misturariam romance, poesia, teatro e gravura e resultariam, dizia, no seu mais importante trabalho --e com certeza o mais ambicioso. Para concluir o primeiro livro, fez um pacto com Deus: se escrevesse algum sacrilégio, sua vida deveria ser interrompida. Aguardemos seu possível lançamento, ainda que incompleto, para ver se foi o trato que resultou no encontro de Suassuna com Caetana.