Projeto para "descomplicar" Machado gera racha até entre escritores
"Ousadia!” “Barbaridade!” “Onde é que vamos parar?” A notícia de que a escritora Patricia Secco vai lançar uma versão “facilitada” do conto “O Alienista”, de Machado de Assis, provocou uma onda de críticas à autora, que submeteu ao Ministério da Cultura o projeto “Os clássicos e a leitura”, para simplificar a linguagem de clássicos da literatura brasileira, fazendo a transposição para uma forma contemporânea.
“A ideia é distribuir os livros para não leitores, para pessoas simples, que sequer sabem quem é Machado de Assis, como o meu eletricista ou o porteiro do meu prédio. Quero aproximar os clássicos dessas pessoas, não distribuir livros em escolas, para crianças. Aliás, nem quero que os jovens leiam isso. É para um outro Brasil, para aqueles que nunca leram e de repente querem ter a oportunidade de conhecer um livro”, explica Patrícia.
Entre os escritores, é esperado e compreensível que muitos se declarem contra – afinal, são eles que escolhem as palavras que vão usar em seus próprios livros –, mas no meio de tantas vozes indignadas, há quem dê um crédito para a iniciativa da escritora.
“Em princípio, não sei quais foram os argumentos da autora, mas essa indignação toda parece despropositada. É uma prática muito antiga fazer versões de autores clássicos, desde que não se apresente isso como um substituto do sujeito”, disse ao UOL Sérgio Rodrigues, crítico literário e autor de livros como “O drible”. “Parece que houve uma reação emocional, como se o Machado estivesse sendo adulterado. E não é isso, o Machado continua sendo o Machado. Isso existe há muito tempo e nunca foi motivo de escândalo.”
Rodrigues refere-se, por exemplo, a uma antiga coleção da Ediouro que convidava grandes escritores brasileiros, como o Carlos Heitor Cony, para reescreverem clássicos. “Aquilo era vendido para um público que não leria o clássico, porque era muito jovem, e servia de entrada para aquele mundo. Lembro de ter lido coisas assim na infância. Não acho que os clássicos sejam absolutamente intocáveis nesse sentido, é possível fazer adaptações sem que o original saia perdendo”, defende.
Em sua página no Facebook, o jornalista e escritor Ronaldo Bressane (“Mnemomáquina”, “O Impostor”) se mostrou a favor do trabalho de Patrícia. “A reforma na educação da literatura passa sim pela atualização da linguagem, mas não só: também pela atualização do currículo, que segue desonesto, capenga e inacessível desde a época em que eu tinha Machado na escola (e não lia, porque Rubem Fonseca tinha mais a ver com a minha realidade). (…) É preferível que o sujeito comece a ler através de uma adaptação bem feita de um clássico do que seja obrigado a ler um texto ilegível e incompreensível segundo a linguagem e os parâmetros culturais atuais. Depois que leu a adaptação, ele pode pegar o gosto, entrar no processo de leitura e eventualmente se interessar por ler o Machadão no original. Agora, dar uma machadada em um moleque que tem PS3, Xbox, 1000 canais a cabo e toda a internet à disposição é simplesmente burrice”, provoca.
Marcelo Mirisola (“Bangalô”, “O herói devolvido”, “Charque”) vai além. “Sou a favor de banir Machadão. Acho que é um desperdício lê-lo antes dos 30 anos de idade”.
Mesmo reconhecendo que a simplificação no vocabulário do escritor possa tornar a obra mais atraente para leitores que a princípio teriam dificuldades para compreender textos mais antigos, a maioria dos que se declaram contra o projeto de Patricia concorda que uma releitura como a de “O Alienista” faz com que a obra deixe de ser de Machado de Assis.
“Não é algo que me ofenda. Adaptações de clássicos sempre existiram. Mas me parece um pouco estranha a forma como querem fazer isso com a obra do Machado - não assumindo totalmente uma adaptação, apenas simplificando o vocabulário”, pondera Santiago Nazarian, autor do recém-lançado “Biofobia”. “O texto original do autor foi pensado daquela forma - as palavras escolhidas não só pelo significado, mas pela sonoridade, ritmo. Ler o Machado simplificado não é ler Machado”, sustenta.
Jornalista, professor e autor de livros como “K” e “Você Vai Voltar para Mim” Bernardo Kuscinski entende, em partes, mas não concorda com a proposta de “descomplicar” a obra dos escritores mais importantes da cultura brasileira.
“Os ingleses fazem muito isso, mas creio que com o objetivo de ensinar a língua inglesa aos que não a tem como língua mãe. Por outro lado, não creio que autores como Machado, Eça de Queirós, Érico Veríssimo ou Jorge Amado, para citar alguns clássicos, ou mesmo contemporâneos, como Milton Hatoum ou João Antonio, necessitam de uma 'linguagem mais acessível' para serem lidos”, argumenta Kuscinski.
“Li 'Vidas secas' a primeira vez na quinta série, foi dureza, mas li, então não sei se é uma coisa tão necessária de se fazer. Por outro lado, a literatura não é sagrada, não vejo mal nas pessoas reescreverem, refazerem, colocarem a mais ou a menos, o problema mesmo é a questão didática. É preciso deixar muito claro que isso não é Machado de Assis. Agora, imagina fazer isso com o Guimarães Rosa, aonde vai chegar... Temos que tomar cuidado para não sermos contra politicas para termos mais leitores, mas a educação não pode nivelar por baixo, isso é essencial, decisivo”, diz Ricardo Lísias, autor de títulos como “O céu dos suicidas” e “Divórcio”.
A opinião do quadrinista Gabriel Bá, que, ao junto de Fábio Moon adaptou “O alienista” para os quadrinhos, vai ao encontro à de Lísias. “'O alienista' é um conto, curto, e quem não lê o conto com o texto original não o faz por este ser difícil e indecifrável, mas por preguiça mesmo. E justamente por ser um conto, quando fizemos nossa adaptação da história, pudemos usar o texto quase na íntegra, respeitando o estilo de escrita do Machado. Não acho que Machado escreva de uma forma difícil. Ele escreve bonito, usando as palavras para dar personalidade ao texto e aos personagens. É justamente este seu talento de usar a língua portuguesa tão bem e é isso que se perde quando se simplifica o texto. A história pode permanecer ali, mas o estilo não”, defende ele que, atualmente, trabalha numa adaptação para do romance “Dois irmãos”, de Milton Hatoum.
“Como tirar as pinceladas de Van Gogh”
Na opinião da doutora em Literatura Brasileira pela USP, crítica literária e escritora Noemi Jaffe, a iniciativa é criminosa. “A simplificação é um desvirtuamento da obra original, quase que um crime contra uma propriedade, contra o que o Machado quis escrever. É como tirar as pinceladas de Van Gogh e deixar seus quadros chapados”, critica. “Quando muda a linguagem, passa para o cinema ou quadrinhos, por exemplo, tudo bem. Até quando se faz algo para o público infantil ou juvenil é diferente. Agora, dizer que a história é a mesma, que a obra é a mesma, mas só mudou a linguagem, é um crime. A literatura não é só a história, é principalmente a linguagem, então isso não pode ser mudado”, explica a pesquisadora.
Vencedor do último Prêmio Portugal Telecom com “O sonâmbulo amador” e também estudioso de Machado de Assis, o escritor José Luiz Passos vê com bons olhos a tentativa de aproximar o clássico dos novos leitores, mas desconfia do método proposto. “A princípio, quanto mais Machado, melhor. Porém, é difícil dar uma opinião sem ter lido o texto modificado... É só substituição de palavras? Então, por que não incluir um glossário ao final? Não sou contra resumos, versões, adaptações etc. Mas a proposta ainda não está bem explicada, a meus olhos, do ponto de vista dos objetivos da mudança. Apenas acho que seria uma pena desperdiçar a oportunidade de colocar nas mãos dos jovens um texto plenamente inteligente, que ajude o leitor a crescer como leitor, sem temer os desafios e os obstáculos da leitura. Meu credo é só um, e é simples: toda forma de leitura vale a pena; todo texto de Machado vale o esforço”.
A versão de Patrícia para “O Alienista” terá uma tiragem de 600 mil exemplares que serão distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor. Outra obra que está no foco da escritora, que teve seu projeto aprovado pelo Ministério da Cultura para receber financiamento por meio de leis de incentivo fiscal, é “A pata da gazela”, de José de Alencar.
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