Lançando novo livro, Valter Hugo Mãe fala de Daniel Alves e García Márquez
Lançado recentemente no Brasil, “A Desumanização”, o novo livro do português nascido em Angola Valter Hugo Mãe, apresenta a menina Halla, que aos 11 anos perde a sua irmã gêmea e vivencia outras experiências que lhe forçam a amadurecer. A história se passa na Islândia, pais nórdico pelo qual Hugo Mãe, nos últimos anos, apaixonou-se. “Fui pra lá por ser longe, sozinha, para estar longe e sozinho e, ao mesmo tempo, num lugar que é símbolo da pureza e da tragédia, que é belo e cruel. Eu queria ver de perto essa beleza quase espiritual, que é uma forma de chegar mais perto da morte. Acho que a vida tem disso, algumas pessoas vivem ligadas à morte, quase querendo resolvê-la, curá-la”, explica.
Partindo do título de seu novo livro, o autor entende que o mundo está passando por uma fase estranha, na qual temos um enorme conhecimento e um grande fluxo de informações, mas isso não é suficiente para sermos pessoas melhores. “Genericamente, tivemos evoluções magnificas nos últimos cem anos. Hoje sabemos do homem muito mais do que poderíamos imaginar, a comunicação é quase absoluta e imediata, mas, ainda assim, isso não impede que tenhamos uma visão de nós mesmos como indivíduos essencialmente grotescos. Temos muita facilidade em aceitar nossa dimensão animal. Seria de pensar que, no momento que possuímos maior cultura, maior autoconhecimento, deveríamos nos distanciar da prática do mal”, argumenta.
Apesar de não acompanhar futebol (“acho qualquer coisa que só tenha homens muito chata”, diz antes das risadas), conecta essa desumanização ao torcedor do Villarreal que arremessou uma banana no jogador brasileiro Daniel Alves, do Barcelona, na Espanha. “Um indivíduo crescido, esclarecido, que pensa, não deveria ser capaz de atirar uma banana. Se podemos pensar e fazemos isso, somos um bicho perverso. Eventualmente sabemos o que nos compete e como seria razoável agirmos, mas fazemos tudo ao contrário. O que nos faz exatamente gente? O ato de pensar? Só de pensar eu sou um homem?”.
Em certos momentos não só de “A Desumanização”, mas de outras obras de Hugo Mãe, a escrita do português apresenta uma mistura do real com o imaginário que traz semelhanças com as histórias narradas por Gabriel García Márquez, escritor colombiano, Prêmio Nobel de 1982. “Minha obra tem fascínio por essa permissividade, inaugurada por García Márquez, que passa a permitir que na ficção adulta haja um universo fantástico, que, creio, faz parte da realidade, ela comporta essa fantasia. Não há verdade alguma sem uma dose de mentira, de ilusão”.
Quando perguntado sobre a recente morte do autor de “Amor nos Tempos do Cólera”, diz que “foi uma coisa muito triste” e compara Gabo a um cupido. “Certa vez, uma moça me disse que o García Márquez era um método para encontrar a pessoa amada, porque ela deveria gostar dos livros dele. E, pra mim, é fundamental que a pessoa amada goste dos mesmos livros que eu. Então, ele é uma espécie de cupido, um dos mais óbvios do mundo, porque até lá no Japão você encontra quem gosta de 'Cem anos de solidão'”.
Saramago
Hugo Mãe ganhou grande destaque no meio literário ao receber o Prêmio Literário José Saramago de 2007 com o livro “O Remorso de Baltazar Serapião”. Na ocasião, o próprio Saramago, patrono da premiação, declarou que, ao ler a obra – algo que sequer tinha a obrigação de fazer –, por vezes teve “a sensação de assistir a um novo parto da língua portuguesa”.
O autor de “A Desumanização” entende que esse foi o seu maior prêmio. “Ele tocou numa angustia minha, que é procurar uma forma de dizer algo da maneira que nunca foi dita. Podemos sempre ter uma história nova, uma linha filosófica, mas uma estética diferente é mais difícil”, diz. Depois disso, a expectativa sobre o lançamento de seus livros cresceu exponencialmente.
Cultura brasileira
Outro momento que o escritor esteve em grande evidência foi na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2011, quando leu uma carta na qual explicitava a sua relação com o Brasil. Nela, falava principalmente da influência da cultura nacional e da importância que vizinhos brasileiros tiveram na sua formação. A apresentação virou notícia em programas de televisão e se espalhou pela internet, o que transformou o escritor em um raro caso de celebridade literária espontânea.
“A leitura virou conversa de salão de cabeleireiro. Depois disso, estava passando na Praça 15, no Rio de Janeiro, e várias pessoas me pararam porque me viram emocionado na televisão, isso foi muito comovente”, lembra. Após o evento, Hugo Mãe recebeu diversos convites para retornar ao país, mas preferiu passar um ano longe do Brasil, para que “pudesse ser lido e visto como um escritor, não apenas como um cara simpático, porque a relação construída pela literatura é o que realmente importa. Algum dia eu posso virar um sujeito horrível, porque todo mundo tem o seu bocado de maldade, mas a literatura permanece”.
Na Flip, Hugo Mãe também demonstrou admiração pelas novelas brasileiras, sentimento que ainda possui, principalmente por conta da qualidade técnica e dos atores. Elogia Mateus Solano, que “pode fazer o papel mais brega possível, mas é sempre excelente”, e lembra de um outro “que não recordo o nome, é gozado, feio, que faz sempre o papel de mau, cretino, que é incrível, faz cinema na novela, é uma espécie de [Robert] De Niro brasileiro. Sempre que eu o vejo na televisão, paro pra assisti-lo. Ele nem é muito conhecido lá em Portugal, sempre faz um filho da puta, mas é um filho da puta perfeito. Fazia o papel do 'zoiúdo' numa novela”. O “zoiúdo” era Alexandre Nero.
Música e literatura
Contudo, da apresentação na festa surgiu uma mágoa. Depois de dizer que Renato Russo e a Legião Urbana tiveram uma importância ímpar em sua vida e destacar a música “Tempo Perdido”, percebeu que a banda não era benquista por muitos no país. “Fiquei puto porque percebi que no Brasil havia um certo afastamento da Legião, como se aquilo fosse uma cabeça caipira, uma cabeça antiga, algo brega. Como é possível 'abregalhar' a Legião, que era uma coisa tão forte, libertária? Legião é uma exclamação redonda, importante. Como podem vê-la como uma coisa cafona? Eu não gostei, fiquei zangado, porque pensava que era um patrimônio imaterial do país. Acho que o povo brasileiro precisa perceber a importância musical e até literária da Legião”, esbraveja o escritor que, atualmente, está apaixonado por Rita Gullo (“ela recupera Lupicínio Rodrigues, e quem o recupera está sempre certo. Não sei como ela não está nos tops”) e ouvindo bastante Arrigo Barnabé (“fui entrevistado por ele há dois anos, passei a prestar atenção em sua música e achei muito doida, nem sei se é boa, mas o resultado de ouvir aquilo é muito louco”).
Ainda destaca Elza Soares, que tem como “deusa absoluta no Brasil” e considera melhor que Elis Regina. “Parece que a Elza engoliu uma onça feroz, ela tem qualquer coisa de bicho que quase ninguém tem. Parece que em pouco tempo é capaz de nos devorar, devorou até o Garrincha. É uma das figuras brasileiras mais únicas no mundo, que traz uma dimensão sobre-humana”.
Da literatura, passou bastante tempo em busca de “K”, de Bernardo Kuscinski, com quem disputou a final do prêmio Portugal Telecom de 2013. “Por tudo que tinha lido do livro, pelos trechos que vi na internet, estava convencido que ele ganharia o prêmio” --que foi para José Luiz Passos por “O Sonâmbulo Amador”. Hugo Mãe ainda diz estar aficionado pela poesia de Angélica Freitas e ser grande admirador de Marcelino Freire e Evandro Afonso Ferreira. “O Evandro herda uma linguagem do Guimarães Rosa, usa o português de forma esdrúxula, que nos ensina novas formas de falar”.
A DESUMANIZAÇÃO
Autor: Valter Hugo Mãe
160 Páginas
Quanto: R$ 34,90
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