Topo

Em versão original, "Ser ou não ser" de Shakespeare não era bem assim

Daniel Buarque

Do UOL, em Londres

24/04/2014 04h00

Uma das frases mais famosas da dramaturgia mundial não era, em sua primeira aparição, mais de 400 anos atrás, a mesma que se conhece atualmente. "Ser ou não ser, eis a questão", a primeira cena do terceiro ato de “Hamlet”, foi registrada originalmente de forma impressa com uma construção textual diferente da que ficou consagrada. Na primeira edição da peça publicada em 1603, lê-se "To be, or not to be, I, there's the point" (Ser ou não ser, eu, aí está o ponto - em tradução livre). Somente dois anos depois, uma segunda edição apareceu com formato mais próximo da frase que marcaria a história do teatro.

Enquanto são celebrados os 450 anos do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare, autor da célebre frase, o mundo do teatro se debruça sobre as variações encontradas no formato e na construção de texto das primeiras edições das peças dele, na virada do século 16 para o século 17. “Existem milhares de exemplos de versões diferentes de frases nas primeiras edições e uma vasta pesquisa acadêmica sobre as variações textuais em Shakespeare”, explicou ao UOL a pesquisadora Ann Thompson, que é professora do King’s College London e diretora do Centro Shakespeare de Londres.

Esses textos com mais de quatro séculos "são as primeiras testemunhas que temos de muitos dos primeiros textos de Shakespeare e mostram como as primeiras formas desses textos foram recebidas na época em que foram escritas e apresentadas pela primeira vez, e como edições diferentes mudaram ao longo do tempo", disse o diretor da Biblioteca Bodleian, da Universidade de Oxford, Richard Ovenden, ao UOL.

Segundo a pesquisadora de Londres, não há consenso sobre o que teria causado a publicação de versões diferentes de uma mesma peça. Uma teoria popular entre acadêmicos é a de que algumas primeiras edições tenham sido recriadas e escritas a partir do relato de atores que participaram da encenação original delas, o que pode ter gerado diferenças.

A Biblioteca Britânica, um dos principais centros de pesquisa e documentação sobre Shakespeare, chegou a rotular algumas edições de “boas” ou “más” em relação ao texto encontrado nelas. “Muitos estudiosos atualmente discordam sobre a questão de apontar a qualidade das primeiras edições como ‘boa’ ou ‘má’, e alguns acreditam que as primeiras edições eram rascunhos anteriores, em vez de versões alternativas”, explicou Thompson.

Primeira impressão de Hamlet, de 1603 - Reprodução - Reprodução
Primeira impressão de "Hamlet", de 1603
Imagem: Reprodução

A maioria das edições de “Hamlet” conhecidas no mundo atual é composta com base no texto da segunda edição, ou numa composição juntando ela ao texto de uma coletânea publicada 20 anos mais tarde (o "Primeiro Folio", de 1623). A primeira edição tem sido ignorada pelas publicações mais recentes da obra, mas Thompson argumenta que, apesar de o texto da primeira edição não parecer ter sido "polido", ele apresenta qualidades “impressionantes”.

Enquanto acadêmicos e estudiosos avaliam o que teria causado a publicação de versões alternativas para um mesmo texto, teatrólogos começam a incorporar elementos de diferentes versões, como em uma montagem recente de “Hamlet” no teatro Globe, de Londres, em que foram reunidos trechos de pelo menos três versões alternativas da peça.

"Quartos"
Conhecidas como "quartos" - panfletos produzidos pela impressão de oito páginas de livro em cada folha de papel  -, as primeiras impressões das peças de Shakespeare datam da virada do século 16 para o século 17 e são a única fonte sobre o que realmente foi escrito originalmente pelo escritor, já que não restaram manuscritos. Algumas delas preservam até mesmo as notas e esboços de Shakespeare sobre o texto original. Outros "quartos" publicados mais tarde trazem o que se acredita ser o registro da versão das peças como lembrada por atores que as encenaram, o que inclui indicações sobre as práticas de montagem das peças no palco.
 
De acordo com Thompson, apenas duas cópias da primeira impressão de “Hamlet”, de 1603, ainda existem (uma na Biblioteca Britânica e outra na Biblioteca Huntington, na Califórnia). Graças ao Shakespeare Quartos Archive, iniciativa em parceria entre instituições dos Estados Unidos e a Biblioteca Britânica, é possível visualizar na internet pelo menos 32 versões diferentes de "Hamlet" publicadas até 1642.
 
Se isso parece um exagero para um leitor comum, que mal conhece uma única versão do texto de Shakespeare, Thompson defende que o arquivo digitalizado pode ser muito interessante. “O leitor comum pode achar interessantes essas diferenças textuais, da mesma forma que um frequentador de cinema comum pode se interessar pela versão do diretor ou alguma versão diferente de filmes de que goste”, disse.
 
Para o bibliotecário de Oxford, “ler os textos dos livros originais, com as fontes que eram usadas na época, a linguagem e a grafia das palavras originais, transporta o leitor ao passado. É uma experiência que eu recomendo”, disse Ovenden.