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Leia trecho do primeiro livro de Vanessa da Mata, "A Filha das Flores"

Cantora Vanessa da Mata publica seu primeiro romance, "A Filha das Flores" - Reprodução
Cantora Vanessa da Mata publica seu primeiro romance, "A Filha das Flores" Imagem: Reprodução

Do UOL em, São Paulo

18/10/2013 18h50

Leia abaixo o primeiro capítulo do livro "A Filha das Flores", romance de estreia da cantora Vanessa da Mata, publicado pela editora Companhia das Letras.

1. A manga de Eva
Uma br comprida e sinuosa corta a cidade ao meio, leva
aonde os olhos não veem. Ela liga e desliga a parte sul do pedaço
norte do país, ativa as suas diferenças e saudades. No meio
do nada, à deriva, a cidade se debate contra o esquecimento e o
tédio. Nos quintais e nas ruas estão os velhos. Os sons dos gritos
das crianças enchem os ares. O meu rosto se vira para o passado
que, instantaneamente, me traz os dias que moraram em mim,
como se eles ainda tocassem o presente.

Todos os anos, neste período, o céu é mexido pela revoada
das araras de peito vermelho e amarelo. Dezenas e dezenas, que
mergulham nas cores derramadas no horizonte. Somos levados
pelo reboliço que elas causam. Nós, os mamoeiros, as mangueiras,
as mangabeiras, os abacateiros e tudo aquilo que é colorido e vive.
De alguma forma, dá vontade de partir com elas, as araras.
Muitas não aparecem mais, estão quase extintas. A gente se entristece,
e deveríamos nos entristecer por todos os outros seres
não vistosos. E se fossem tatupebas? Vespas? Gambás ou hienas?

A humanidade só se importa com o que enfeita, que se danem
as hienas com o seu gargalhar detestável, irônico, malcheiroso.
Nesses dias, sinceramente, eu me meteria por entre as araras e
voaria no fundo do céu, até me faltar o ar.

Me lembrei de mim, pequenina, com oito anos, e de titia
Florinda, já com doze. De nós duas seguindo o trieirinho das
lava-pés, aquelas formigas davam a volta ao hemisfério. Éramos
três ou quatro engrossando uma turminha por conta delas, o
diabo em inseto, devoravam o jardim de roseiras. Abraçadas às
folhas, avançavam com gostura e ignorância. Nós, mergulhados
na noite, atrás das vermelhas cabeçudas, de lanternas em punho
e com a atenção voltada para o trieirinho. As folhas das roseiras
mordidas, sangrando no lombo das bichas bundudas e sem coração,
apenas com fome. O corpinho não desgrudava da tarefa
conquistada até o ponto de muitas horas de sacrifício. Se as puxássemos
pelo tronco, na intenção de separá-las das folhas, bem
podiam perder a cabeça, e muitas perdiam, mas jamais as folhas,
as folhas elas não soltavam.

Passava uma vida, e nada de chegar à boca do formigueiro,
nunca chegamos de fato ao mais antigo, ao pai de todos. Era um
grande mistério. As formigas faziam acontecer o sigilo. Tinham
uma grandiosa estrada de um vaivém intenso, interestadual,
internacional — talvez mais importante do que a nossa br. O
cheiro da noite, o seu sereno, deitava na nossa testa, como que
flutuando sobre nós.

Titia Florinda era vestida de olhos para aquilo, uma onça
vigiando a coleção de presas. Era inteira no movimento delas.
Às vezes corria veloz, atenciosa, para não pisar na estrada descamisada,
despelada pelas bichinhas, desgastada e levemente
afundada com o passeio do fluxo. Tão difícil quanto descobrir
como começou uma fofoca — e o seu grande estrago — era
encontrar o seu ponto central. Formigas não entregam segredos,
a sua organização é intransponível e a sua casa, um santuário.
Gastávamos dias e noites inteiras na procura, começando sempre
de onde havíamos parado na noite anterior. Para não nos
perdermos, fincávamos bandeirinhas vermelhas no ponto onde
terminávamos — um esforço danado, acumulado e admirado.

Quando descobríamos um dos seus refúgios, o direito de fazer o
que quiséssemos antes do veneno terminal era nosso, mas nunca
encontramos a esperada matriz, jamais o esconderijo da rainha.

Para nosso gosto e deleite, a nossa titia lançava sugestões de
quando e como seria o fim da batalha. A descoberta seria marcada
por um filete de querosene ou, para começar, um traque; havia
ainda o álcool — uma enorme explosão, provocada por uma
bombinha caseira de médio porte — e pronto! Estava traçada
uma verdadeira guerra que jogaria os corpos das cabeçudas para
todos os lados. Era o começo de um fim. Voltávamos para casa
saltitando e respirando o ar dos vencedores: fino e puro. Fresco.

O nosso jardim era agitado: rosas para a sacristia da igreja,
flores para o consultório do médico, para a secretaria da escola,
para os funerais que aconteciam de vez em nunca — mas que
quando vinham mais pareciam uma enxurrada, “acumulados
de sete em setecentos”, como diziam os mais velhos. Naquela
quantidade de pessoas, como não havia maior natalidade, a mortandade
também não mudava, e o que era visto pelos velhos
com medo e exagero dos zeros era, na verdade, o ciclo normal
da vida… e da morte. Os altares privativos das casas incrustadas
nas ruelas também ganhavam flores. O nosso jardim dava para
todos, inclusive para os mais de vinte trieiros de lava-pés que desmantelávamos
todos os meses. A sua área ocupava dois alqueires,
mais ou menos oito quarteirões — o que, para nós, equivalia a
uns doze, aumentando a cidade e tornando-a mais charmosa.

Naquela época, eu achava que era chato aquele trabalho
duro, dar de comer às plantas. Com um saco de adubo nas costas
e sempre suja de terra, folhas e tocos, arranhada pelos severos
espinhos. Conforme fui crescendo, passei a olhar para o significado
de cada rosa, para o serviço que elas prestam, o alento
que trazem, os romances que refazem e o encantamento que
produzem. A beleza das espécies. Não se pode olhar uma flor
sem o coração, geralmente é ele quem as vê. Se tivesse compreendido
isso antes, não me importaria muito de ter colhido
todas elas, com os seus caules troncudos, e decepado as suas
pétalas doentes.

Ao entardecer, titia Margarida, irmã mais velha de Florinda,
sempre nos esperava do lado de fora da nossa casa, sentada
na sua cadeira de bunda amaciada pelo tempo, com todo o formato
dela, rindo da caça às feras, chacoalhando a voz dos pés à
cabeça, e sempre repetindo: “É no que dá a falta do que fazer dia
sim, dia não, né? Amanhã entrego uma enxada para cada uma,
para carpirem o quintal de seu Tenório, que está cheio de ervas
daninhas e carrapichos. Isso vocês não querem, né?”.

Já titia Florinda, sempre retrucante, dizia que nos ver fazendo
aquilo a divertia, que o nosso brinquedo era o dela. Uma vida
entediada e parada, gangorrando na emoção de outras.

Margarida havia cumprido os seus dezoito anos, estava em
idade de primeiro e último namoro. Os costumes da cidade
grande, modernos e mais soltos, afrouxam os compromissos e
nem sempre chegam a lugares como o nosso. Muitas cidades
ainda moram nas décadas de quando surgiram, nas suas formações
arrumadas, onde podem prender as anarquias dos malandros
e controlar as assanhadas. Imóveis, se arrastam pelos anos
sem se desenvolver, continuando nas suas pequenices e intrigas,
adorando o fato de serem ilhas, cuidando da aparência de todos.

Se preparando para o casamento, que já se emoldurava no
desejo, a minha titia também cuidava da aparência. “Um moço
promissor da cidade”, ela dizia, “com tudo o que uma mulher
pode querer de um homem.” Enumerava as suas qualidades, se
exaltando. Eram elas a beleza, para acordar e dormir com bom
humor; a simpatia e o carinho, para sentir saudade; a aparente fidelidade,
para perdoar a primeira traição e acreditar que será difícil
uma segunda; a inteligência, para, pelo menos, ele esconder
as outras depois daquela primeira traição; um bom papo, para
se relevar também as outras coisinhas chatas, só sabidas com a
convivência; a boa voz, que é beleza mais vista e atrativa para a
mulher, para haver sedução ao telefone, ao pé do ouvido, como
os locutores de rádio; e, finalmente, a vontade de trabalhar com
um ofício que traga admiração, em muito a responsável pela
continuidade de amor na vida de um casal. Isso sim era macho
de respeito! Tudo regado a uma situação de viver em interior,
onde as línguas das senhoras trabalham muito e fazem acontecer,
compensando assim o que desacontece.

Diziam os vingativos que as tais fofoqueiras teriam todos os
traumas causados por elas revelados nos seus enterros, escritos
nas suas línguas, que se estenderiam como pergaminhos, contando
os seus males. Nas suas mortes, as línguas das fofoqueiras
se rebelariam e sairiam dos seus corpos. Iriam ao lado do caixão,
em caçambas, carroças, carrocerias, dependendo do tamanho
da fofoca e da destruição causada por elas. Cheirariam tão mal
que ninguém mais, nem os seus poucos entes queridos, as acompanharia
até o túmulo. Elas, as senhoras donas das suas línguas,
quando ouviam tais pragas, paravam por algum tempo a sua
compulsão, rezavam dezenas de novenas… mas logo caíam no
vício novamente. “A sua língua será enterrada em uma carreta,
fedendo como ovo podre”, gritava um e outro, depois de qualquer
fofoca descoberta.

Titia Margarida achava que estava certa nas suas escolhas,
os seus seios e pernas permaneciam firmes e esticados, arrebatadores
e nocauteadores. E as suas coxas não podiam ser mostradas
em qualquer dos cantos da cidade. Ela obedecia de pronto à
picuinha da fofoca antes de ela começar, assim evitava qualquer
mote. O invejador ditava as regras, e titia não as testava. Talvez
estivesse realmente na maturidade do relacionamento formador
de família, que não permite caçar formigas nem pular horas,
se encontrando com o nada. Poderia dormir com os filhos nas
ideias, enquanto nós, muitas vezes, dormíamos em cima de um
ingazeiro velho, olhando os seus frutos que se assemelhavam
a cobras, cada um com o seu galho largo e aprazível servindo
de abraço. De madrugada, ele se balançava, e o barulho das folhas
era sombrio, deslanchava lendas que contávamos baixinho
como um remédio de brincar que produzia arrepios, mas que
era também acalentador. Batia no íntimo fantasmagórico dos
pântanos e no ninar da tarde da criança mais tranquila. Cheirava
a sombra e ao que era escondido, nunca claro o bastante.

As estrelas relaxadas e exibidas. Na luz de agosto, no pôr do sol,
tons de laranja coloriam a todos e a tudo. O amarelo dourado
ferrugem, quando chegava, era como se fritasse o final da tarde.
Durante o pôr do sol, era possível ver o outro lado do mundo
logo ali, até o cheiro podíamos sentir: cheiro de palavras deixadas
de molho e saídas estufadas — raçudas — esperadas em
frente ao forno de tantas horas. A molecadinha juntava teorias:
que a noite tinha assassinado o dia, ou que as cores que nos invadiam
eram dos estágios da briga e da morte dele. Contavam
os detalhes.

Em cima do ingazeiro, narrando como um homem de circo,
titia Florinda fazia as honras: o amarelo era o começo do
inflamado, o início da grande luta; o roxo, a primeira punhalada,
seguida da facada mortal; o vermelho, o seu sangue derramado
no horizonte; e, por último, a penumbra da escuridão: a noite
retirando o corpo do dia, jogando-o no precipício do outro lado
do mundo e tomando o seu lugar de uma vez. Para matar o dia,
a noite usava um punhal especial, cravejado de brilhantes que,
depois do feito, se distribuíam em espécimes conhecidas como
estrelas.

O céu dali é mais bonito, mais largo e profundo do que
em qualquer outro lugar. Enquanto um contava a saga da luta
entre os dois seres gigantes — a noite e o dia —, vez por outra eu
contava a minha versão:
“Nossa Senhora borda o maior céu para nós, em um tecido
que não se anuncia em acabar. É como se existisse um céu para
cada noite e para cada lugar, para nos fazer companhia. Nossa
Senhora nos deu este. O dia não morre, ela apenas o tapa para
dormirmos num tecido grosso e milenar. Os furinhos no pano
velho fazem com que a luz o atravesse e não nos deixe totalmente
no breu.”

Titia Florinda ria dessa história e fazia questão de contá-la
a todos os vizinhos, junto com a resposta dela, claro: “Nossa Senhora
tem mais o que fazer do que ficar bordando, bordando”.
Eu caía do sonho sempre que ela dizia isso.

Quando acordava, os tempos eram cheios. O dia não se
adiantava nem atrasava, tudo era visto com o espanto de quem
descobre coisas novas a todo instante. Era cheirado e sentido
honestamente, demoradamente. As coisas em tamanhos enormes,
da casa às frutas. Acho que, com os anos, as nossas energias
de observação diminuem, junto com o olfato, o tato, a visão e a
energia vital, e a nossa percepção vai se apagando na distração
e nos afazeres. Perdemos a amplitude da infância, que nos faz
perceber os detalhes puros e a enormidade das coisas.

Num lado afastado do grande quintal, que se emendava
com o jardim, havia mangueiras centenárias. Na época dos seus
frutos, o chão se pintava de mangas e cheiros: coquinho, espa-
da, bourbon, sabina, boi e abelhas de todos os tipos. Besouros,
uns bichos do mato e, no alto das suas copas frondosas, araras
e outros pássaros que conseguiam driblar as suas onipresenças.

Todas com os seus pares, casadas para sempre, monogâmicas até
a morte, e depois dela também. As senhoras frondosas, que chamávamos
de baianas, eram generosas com todas as espécies e
bichos de diferentes tamanhos, dos grandes aos rastejantes — até
com as vacas do nosso vizinho Tenório, que dependuravam os
pescoços nas cercas para alcançar algum fruto, e muitas vezes só
faltavam pedir “por favor” ou “pelo amor a Deus”. A cada mugido
aprendiam a ganhar mangas. Era uma verdadeira luxúria.

Quando alguma manga pequena, morta antes do tempo, caía,
fincávamos uma varinha entre ela e uma manga maior e, nesta,
quatro varetas imitando as pernas.

O fruto proibido era uma maçã?!
Só se Eva não conhecia a manga!

Lambuzávamos do rosto às bochechas, das mãos aos braços,
e as ideias não eram mais as mesmas.

Tínhamos deliciosas alternativas para sermos felizes. Não
dependíamos de luxos ou de outros instrumentos mais dificultosos
do que as nossas danuras. Enquanto os meninos de cidades
grandes brincavam com legos, nós tínhamos as formigas, o
dia recomeçando, tudo de novo e de novo, e era tão bom. Os
carinhos da vida paravam lá. Era como um represar de acontecimentos
maravilhosos. Não que as coisas maléficas não nos
atingissem, não é isso, mas elas não se demoravam, apenas passavam,
como o vento do norte ou as araras. Não nos pertenciam.
Titia Florinda era a caçula de duas irmãs de uma grande
família fêmea por excelência e natureza. Era a única que ainda
não tinha vestido o tal sapatinho de moça, em cuja frente bordavam
umas pedrinhas faiscantes de brilhantinhos falsos ou reais,
dependendo do poder aquisitivo da madrinha que o presenteava.


O tal sapatinho com que as meninas sonhavam quando a puberdade chegava.
“Esse é para ver Deus, nada de usá-lo à toa,
de sujar o seu saltinho no barreal — apenas quando tiver a festa
de noivado”, dizia a sua madrinha quando lhe deu, aos seus doze
anos, a “cesta imaculada”, cheia de diversos presentes: pulseiras,
fitas aveludadas, prendedores de cabelo, perfume — verdadeiros
mantimentos de guerra para sedução que, se usados antes do
tempo, poderiam provocar o caos.

Florinda mal começava a ouvir essas recomendações de
casamento e bom marido e logo fingia ir ao banheiro, escapulindo
pela janela através da buganvília que dava para o seu quarto
— fugindo daquilo que para ela era uma tortura. Cansada dos
papos e conselhos que trazia da missa dos domingos, de beijar
a mão peluda do padre, de se sentar assim e comer assado, ela
pensava longe dali, parecia que desejava alguma coisa que a pusesse
na rota da br e a levasse embora, ou pelo menos para longe
do trivial. Sempre deixava os sapatinhos para um dia do próximo
ano que viria, e corria para a estrada do cemitério que ia dar
em algumas fazendas e lugares proibidos. Foi crescendo para
os quinze anos, para os dezesseis, e sempre preferindo o cavalo,
saltitando e deixando os cabelos ao vento, os seios adiantados
e soltos, harmoniosamente firmes, sacolejando com os saltos.

Ela apertava e afrouxava as coxas até estremecer, debruçando o
peso nelas, se roçando na coluna do cavalo, que massageava o
seu clitóris. De vestido de seda, com as devidas transparências,
se deitando para trás e para a frente, esfregando a sua boca das
pernas entre um nó e o outro da coluna do animal. Respirava
um súbito ar de amêndoas, daquelas deitadas no fogo, com mel
e chocolate. Deitava sobre o cavalo como se ele fosse um amante,
e ela um vento desgovernado. O delírio era de todos os que
viam. Existia uma estranheza excitante e constrangedora, água
que brotava na boca sem explicação, sem a gente saber como
aquela sensação começava ou como poderia passar. O cavalo,
relinchando, retorcia o pescoço para trás e lambia furtivamente
o seu tornozelo. Não havia temperatura que apaziguasse o calor
de todos os testemunhos. Era preciso um banho de rio, gritos,
correrias e risadas nervosas de todos nós para aliviar os novos sentimentos.

Titia Florinda pertencia à turma que passava a meia-
-noite no cemitério, que gostava de ver a lua cheia e fantasiar
monstros nela, de projetos de sair pelo mundo com os ciganos,
de fugir com o circo — ela era mais do que minha amiga, era
minha confidente.