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"Escrevo para me manter índio", diz escritor Daniel Munduruku

Carlos Minuano

Do UOL, em São Paulo

04/09/2013 14h26

Para o escritor Daniel Munduruku, escrever é uma forma de se manter ligado à cultura da aldeia que deixou há 15 anos no Pará, da qual saiu por curiosidade, vontade de descortinar novos horizontes. "Escrevo para me manter índio", diz o autor de 42 livros voltado para o público jovem e infantil, graduado em filosofia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorando em Literatura na Universidade Federal de São Carlos. 

Sem se distanciar das raízes munduruku, tornou-se educador social, criou um jeito de ensinar que incluiu a tradição indígena de contar histórias. No meio do caminho descobriu que sabia e podia escrever. Não parou mais. 
 
Neste ano, Munduruku foi um dos convidados da Bienal do Rio, onde falou na sessão "Guarani, Kaiová e muito mais – Literatura de índio", ao lado de Graça Graúna e Lucia Sá nesta terça-feira (3). Para ele, ao escrever sobre a própria realidade, o índio pode mudar sua imagem na sociedade. “Tem ajudado a questionar velhos estereótipos”, afirmou em entrevista ao UOL. “As pessoas que entram em contato com nossa literatura acabam criando para si um novo olhar e isso, com o tempo, vai chegar às mentes de todos os brasileiros”. 
 

Os índios leem pouco devido ao acesso limitado a traduções para suas línguas tradicionais. Querem ter acesso ao livro e à leitura, mas é preciso ainda desenvolver esse hábito neles

Escritor Daniel Munduruku
O escritor é otimista e acredita que muita coisa já mudou. “A forma de compreender os povos indígenas evoluiu”, diz. ”Está evidente que desejamos participar da vida nacional sem abrir mão de nossa cultura, e embora muitos discordem, vejo a construção de uma nova relação do Brasil com seus povos ancestrais”. 
 
E ele trabalha há tempos para que essa visão se concretize. Criou o Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais, e a Academia de Letras de Lorena – cidade onde vive, localizada no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Mas o destemido escritor reconhece que o cenário está bem longe do ideal. Ele diz que a relação dos povos indígenas com relação aos livros e à literatura segue a curva estatística do próprio país. “Os índios leem pouco devido ao acesso limitado a traduções para suas línguas tradicionais. Querem ter acesso ao livro e à leitura, mas é preciso ainda desenvolver esse hábito neles”.
 
No momento, ele se dedica à organização da I Jornada Literária do Vale Histórico que irá acontecer entre os dias 18 e 20 nas cidades de Lorena e Guaratinguetá. A opção em viver na região foi estratégica, por ficar no caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro e São Paulo.
 
Apesar da agenda agitada, o escritor garante preservar um pouco da "vida de índio" na pacata cidade que escolheu para morar, onde segundo ele, se refugia para poder escrever enquanto cuida do quintal, da casa e da família. “Não sou muito bom com rotinas, às vezes me sento diante do computador e escrevo, outras saio para caminhar, tem dia que fico à toa, passeio pela cidade, encontro pessoas”. 
 
O diário de um curumim 
Entre os vários livros que escreveu, “O Diário de Kaxi” conta a história de um indiozinho que pela primeira vez deixa a aldeia e vai para a cidade. A ideia da obra, segundo o escritor, era mostrar o que as crianças da aldeia munduruku pensam sobre a cidade, suas dúvidas e curiosidades. A garotada da tribo ainda produziu os desenhos que ilustram a história, recheada de palavras indígenas. 
 
A imaginação dos pequenos mundurukus influenciou o livro, como os prédios, que para Kaxi são “caixinhas de morar”, ou os carros, que parecem “caixinhas em cima de rodas”. Os anciões da aldeia ensinam que o céu é redondo, então por que construir tudo em formato de caixas, questiona o pequeno curumim, no livro.
 
A cultura indígena ocupa evidentemente o maior espaço na estante de Daniel Munduruku. Mas ele conta que tem espaço para outras leituras. Apesar de citar em primeiro Darcy Ribeiro, fundamental para colocar os indígenas em evidência, ele destaca o pensamento político de Hanna Arendt, pelo qual se diz encantado, fala de um alinhamento filosófico com Platão e Nietzsche. Na educação, se diz atraído pelo pensamento complexo de Edgar Morin e a concretude de Paulo Freire.  
 
O apetite literário do escritor indígena é variado, ele revela que cabe de tudo, da “reflexão non sense” de Paulo Coelho às tiradas existenciais de Saint-Exupery. No momento, lê “O Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meirelles. “Cada obra tem seus sentidos e leituras possíveis, gosto de pensar que o que leio é mais um universo que jogo para dentro de mim”, conclui Munduruku.
 
Formigas guerreiras
Distante da pacata Lorena, o povo mundukuru (palavra que significa ‘Formigas Guerreiras’), vive dias de tensão e conflitos. Em novembro de 2012, uma operação da Polícia Federal cujo alvo era o garimpo ilegal no norte do país acertou nos índios mundurukus. Seis índios ficaram gravemente feridos e um foi morto. 
Outra ação policial está em curso e promete manter a temperatura elevada na região. Desta vez, o objetivo é garantir os estudos de impacto de implantação da usina hidrelétrica São Luís do Tapajós. Índios alegam que não foram consultados. 
 
“Nossa região tornou-se um cenário de guerra”, comenta Daniel Munduruku. Ele observa que os povos indígenas gostam do diálogo, e que a invasão das terras para ações policiais é injustificada. “Não precisa invasão, mas parece que a vida das pessoas não têm tanto valor quanto os interesses econômicos”.