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UOL visita casa Fora do Eixo-SP; líder fala em ação judicial e autocrítica

Gabriel Mestieri e Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

18/08/2013 11h09

A ideia parece sedutora para qualquer jovem que goste de cultura e novas experiências: morar com outras pessoas da mesma idade e com as mesmas afinidades numa casa grande onde tudo é compartilhado e feito de maneira coletiva. Essa é a proposta das casas do Fora do Eixo, nas quais os integrantes da rede vivem juntos em grupos de até 30 pessoas para economizar nas despesas de aluguel, luz, água, telefone e internet.

O sonho alternativo, entretanto, virou pesadelo para alguns ex-integrantes. Após abandonarem os locais, eles relataram proibições de se relacionar com pessoas de fora das residências, uma divisão machista de tarefas e até o uso de militantes para atrair sexualmente outros indivíduos para a rede.

O UOL visitou a casa do Fora do Eixo em São Paulo na última sexta-feira (16), dia especialmente difícil para as lideranças da rede. Após duas semanas de um bombardeio de críticas às práticas do coletivo, a revista "Carta Capital" publicou reportagem assinada por um ex-parceiro do grupo. Na matéria, uma antiga moradora da casa de São Paulo afirma que Pablo Capilé, cofundador do Fora do Eixo, utiliza a expressão "catar e cooptar" para se referir à prática de um(a) militante fingir interesse sexual para trazer ao coletivo perfis de interesse das lideranças.

"As meninas do Fora do Eixo vão processar essas pessoas [que estão fazendo as acusações]. Isso é de um machismo intolerável do meu ponto de vista. A suposição do acontecimento disso, a acusação para as meninas que estão dentro da rede, saca? É uma acusação muito grande. Você não devia falar isso numa entrevista ou dar um depoimento sobre isso. Você tinha que ir para o Ministério Público, para a polícia, denunciar para os órgãos responsáveis. Eu vou defender que as mulheres do Fora do Eixo processem todo mundo que está falando isso, porque isso não pode passar barato, não pode ficar assim", defende-se Capilé, inquieto na poltrona da sala de TV da Casa em São Paulo.

A reportagem foi recebida por Felipe Altenfelder, membro do planejamento do coletivo. De touca preta e barba por fazer, Felipe apresentou a redação da Mídia Ninja e do #PósTV nos fundos da casa, próximo ao palco onde são recebidas bandas no evento Domingo na Casa. A casa de São Paulo abriga cerca de 20 moradores, mas só metade estava no local no momento da visita. "Tem muita gente fora hoje", disse Capilé.

Durante dez anos essas coisas não aparecem, aí no nosso momento de grande visibilidade isso aparece? Acho que tem algumas coisas, uma matemática que precisa ser somada para se ter clareza do que de fato acontece. Por que essas reclamações não aconteceram antes?

Pablo Capilé

Dentro da casa Fora do Eixo-SP
Localizada em uma rua tranquila do bairro do Cambuci, na região central de São Paulo, a casa parece uma residência comum vista pela fachada. Por dentro, cada cômodo na parte térrea abriga pessoas trabalhando em notebooks. Ao mesmo tempo, uma das moradoras frita algo no fogão da espaçosa cozinha enquanto outros abrem uma garrafa de Coca-Cola em cima da mesa cheia de pães e mortadela.

Tudo na casa é simples, os móveis são usados, e há revistas, livros e DVDs empilhados pelos cantos. No banheiro, escrita a canetão na janela, está uma famosa frase da série "Arquivo X": "A verdade está lá fora". Em quase todos os cômodos há intervenções artísticas nas paredes, como grafites, quadros e colagens. Alguns instrumentos musicais também ficam espalhados pela casa.

Há regras básicas de convívio. Quem tomou banho por último, seca o banheiro. Comeu, lave o prato. As tarefas domésticas, afirma Capilé, são divididas entre todos, e não ficam concentradas nas mulheres, como relataram ex-moradores. "Além de não ser verdade [a divisão machista de tarefas], estamos há quatro ou cinco meses aqui sem mulheres. Foi no último mês que entraram algumas. Ficamos cinco, seis meses só com homens, praticamente, e esses homens fazem tudo. Hoje mesmo quem fez a comida foi o Lucas. Todo mundo cozinha".

Fumando um Marlboro vermelho atrás da outro, intermediados, vez ou outra, com um gole de Coca-Cola, Capilé também nega veementemente qualquer proibição envolvendo relacionamentos, dentro e fora da casa. "Não existe essa orientação. Até porque você não vai achar e-mail, não vai achar texto, não vai achar gravação. Você vai achar depoimentos de insatisfeitos. Tem algumas pessoas que, quando saem, projetam essa frustração em nós que ficamos. Por que nenhuma pessoa saiu da rede nesses dez dias [em que estouraram os acontecimentos]?".

Outra acusação que faz Capilé se revirar na poltrona é a de que as condições de trabalho nas casas do Fora do Eixo são análogas à escravidão. Pelo trabalho para a rede, os moradores têm as despesas de moradia pagas, mas não recebem salário. A diferença entre o que a pessoa produziu e o gasto com essas despesas é creditada em Cubo Cards, moeda social da rede, criada para mediar as trocas de serviços entre diferentes coletivos espalhados pelo Brasil e definida por Capilé como "uma forma de sistematizar a broderágem". "Uma coisa é trabalho escravo numa fazenda no interior do Brasil. Outra coisa são pessoas 24h conectadas à internet, com as portas abertas, podendo fazer o que quiser", disse.

Não quero dizer que depoimentos dos insatisfeitos não são relevantes para nossa autocrítica. Quero dizer que tem muito mais para além disso. Aqueles repertórios colocados naquelas críticas, elas implodiriam qualquer casa Fora do Eixo. Se aquilo fosse realidade uma casa FdE não seria possível de existir

Pablo Capilé

Momento de autocrítica
"Durante dez anos essas coisas não aparecem, aí no nosso momento de grande visibilidade isso aparece? Acho que tem algumas coisas, uma matemática que precisa ser somada para se ter clareza do que de fato acontece. Por que essas reclamações não aconteceram antes?", questiona Capilé, em referência ao fato de o Fora do Eixo ter sido alvo de um pico de exposição desde o aparecimento da Mídia Ninja, nos protestos de junho, e ainda mais intensamente desde que ele e o jornalista Bruno Torturra concederam entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura.

O cofundador do Fora do Eixo admite que, apesar de discordarem de grande parte das acusações, os integrantes da rede estão fazendo uma autocrítica sobre suas práticas. "Não quero dizer que depoimentos dos insatisfeitos não são relevantes para nossa autocrítica. Quero dizer que tem muito mais para além disso. Aqueles repertórios colocados naquelas críticas, elas implodiriam qualquer casa Fora do Eixo. Se aquilo fosse realidade uma casa FdE não seria possível de existir".

E, por isso, neste final de semana acontece em Brasília um encontro com lideranças e colaboradores das casas de todo o país, marcado para discutir a opinião pública diante da rede e refletir sobre possíveis erros no processo. Um dos assuntos na pauta diz respeito ao fato de moradores tornarem coletivos seus bens pessoais ao se mudarem para uma casa da rede, como automóveis. "É mais complicado [se trouxer]. Depois o carro entra na dinâmica, e se a pessoa não fica [na casa], aí tem que resolver isso no final, porque a pessoa utilizou de outras coisas, de outras pessoas, então assim: o melhor dos mundos é que pessoas venham com suas roupas e esteja aqui pelo tempo que ela achar que deve estar aqui".

E se um militante quer morar na casa, mas tem outras despesas, como pensão de um filho? "Se ele quiser mudar para uma casa a gente também financia os custos do filho. Então o filho também pode vir morar junto caso ele queira morar aqui", afirma Capilé.

Questionado se, após as críticas, pensa em desistir da rede, Capilé nega. "Quando as pessoas enchem muito meu saco, reclamam de todas as coisas do mundo, eu até digo isso de desistir para os brothers. Mas tem muita coisa a se fazer. Estamos passando por uma série de desafios. Estamos tendo que nos analisar de forma mais intensa. Mas não penso em desistir, não, cara", afirma o publicitário de formação, que diz já ter recebido propostas para assumir cargos públicos. "Mas não tenho interesse", garante.