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Vik Muniz sobre política cultural do governo Bolsonaro: "É só destruição, é só desmantelamento"

Monika Flueckiger/World Economic Forum
Imagem: Monika Flueckiger/World Economic Forum

Letícia Mori

Da BBC News Brasil em São Paulo

29/11/2019 18h56

Um dos artistas brasileiros contemporâneos com maior destaque no exterior, Muniz critica escolhas do governo para a área da cultura e diz que nomes como Roberto Alvim foram escolhidos 'com base na incompetência e no potencial que eles têm de destruir as pastas que eles ocupam'.

"É um projeto de destruição." É assim que o carioca Vik Muniz, um dos artistas brasileiros contemporâneos com maior destaque no exterior, define a política cultural do governo de Jair Bolsonaro.

"Eu não vejo dentro do discurso dos atuais secretários e dos ministros do governo Bolsonaro nenhum plano concreto de construção. É só destruição, é só desmantelamento", diz ele.

O artista critica nomeações para cargos na área cultural, como o novo secretário de Cultura, Roberto Alvim, e o novo diretor da Fundação Palmares, Sérgio Camargo.

Afirma que os nomes escolhidos são pessoas "incompetentes" com um "projeto puramente ideológico e demagogo", estendendo também a crítica ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Conhecido pelo experimentos que faz com materiais inusitados, como recriação de obras clássicas com feijão, açúcar, geleia e até lixo, Muniz é também reconhecido pelo forte engajamento social do seu trabalho.

É criador de uma escola que oferece arte e educação para crianças carentes do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro; visita campos de refugiados e envolveu uma comunidade de catadores na produção de obras feitas com material reaproveitado do lixo. O filme sobre a atuação deles e como sua vida mudou, Lixo Extraordinário, concorreu ao Oscar de melhor documentário.

Muniz diz que suas obras não surgem a partir de opiniões políticas, porque isso "não é muito ambicioso". "No máximo posso mostrar as coisas que estão acontecendo e apresentá-las de uma forma que as pessoas possam refletir por si mesmas", afirma.

O artista plástico, que divide seu tempo entre os estúdios que tem no Rio de Janeiro e em Nova York, diz que a repercussão da situação política do Brasil no exterior hoje é "vergonhosa". Nesta semana, quando estava no Rio de Janeiro, conversou por telefone com a BBC News Brasil.

Leia abaixo trechos selecionados da conversa.

BBC News Brasil - Você é conhecido pelo seu engajamento, não só falando de temas como o lixo, refugiados, trabalho infantil, mas envolvendo as questões na produção. Você considera a sua arte política? Acha que a arte tem que necessariamente ser crítica ao momento histórico em que ela se insere?

Vik Muniz - No momento em que você começa a criar a partir de opiniões políticas você está reduzindo muito, você não está sendo muito ambicioso. Mas a arte é sempre política, não interessa como, de onde ela começa. O artista tem como função criar ferramentas, instrumentos para que o homem tenha uma relação melhor com o ambiente que o cerca, seja ele natural, social, político.

Como cidadão eu tenho o papel de fazer a minha parte. Eu acho muito bom participar da vida do lugar onde você vive, estar com as pessoas, estar vivendo aquele lugar plenamente, não só convivendo com uma elite cultural. A vida é o material de trabalho que a gente mais utiliza.

A gente trabalha muito com a realidade. Talvez seja um problema fundamental que a gente enfrenta hoje em dia, esse déficit gigantesco com a realidade, que é o resultado da relação que a gente vem alimentando com ela através de novas mídias. Isso é um fenômeno mundial, você começa a simplificar de uma forma sumária todas as questões complexas que nos afligem, como essa coisa de esquerda ou direita.

BBC News Brasil - Você está falando das fake news?

Muniz - Da confusão em relação à realidade que está gerando todo tipo de problema.

No Brasil essa onda chegou com muita força e que fez com que a gente esteja com um grupo de pessoas que, talvez por não terem sido expostas o suficiente a uma cultura plena, rica, elas não veem o valor que isso tem. Estou falando de cultura em geral, conhecimento. No meio ambiente você tem um ministro [Ricardo Salles] cuja função é desmantelar o que foi feito antes dele. Nos EUA você viu isso, essas nomeações...

BBC News Brasil - Qual sua opinião sobre as nomeações do governo na área da Cultura?

Muniz - Você vai colocar uma pessoa sem nenhuma qualificação? Esse atual secretário da Cultura [Roberto Alvim], a função dele é defender a cultura brasileira, mas ele vai num pódio internacional como a Unesco e ataca a cultura brasileira.

Para responder precisamente à sua pergunta, essa nomeações têm sido tão incompetentes, e tão sumárias, sem nenhum estudo, que elas não vão acarretar de forma alguma nenhum estrago permanente para a cultura brasileira.

Porque não existe nenhum gênio atrás disso, só gente extremamente incompetente que está sendo nomeada com base na incompetência e no potencial que eles têm de destruir as pastas que eles ocupam.

Eu acho, sim, que elas vão prejudicar projetos individuais, vai ter muito artista sendo perseguido pela inclinação política e pelo conteúdo que o artista está trabalhando. Mas a história nunca foi muito bondosa com pessoas que tentaram manipular a cultura dessa maneira. Ninguém consegue mexer com a cultura sem sofrer graves consequências.

Eu sei qual o plano desses caras, acho que eles querem o fim do mundo rápido [risos] para poder escapar [desse julgamento]. Isso já aconteceu antes, durante o governo [de Fernando] Collor, o cinema brasileiro sofreu muito e depois teve uma virada, voltou.

BBC News Brasil - Na fala dele na Unesco, Roberto Alvim disse que "a arte e a cultura brasileiras foram reduzidos a meros veículos de propaganda ideológica".

Muniz - E dizendo isso ele está propondo o quê? Um outro tipo de propaganda ideológica. O problema com toda a fala do secretário é originalidade, porque parece que ela foi copiada e colada de um discurso do [Joseph] Goebbels [ministro da propaganda da Alemanha nazista]. Ela é preocupante, em relação ao tom. Mas ela também me dá um alívio muito grande em relação à incompetência, à falta de originalidade com que ele se apresenta.

Todo esse movimento contra a cultura parece muito uma coisa viral, um vírus burro, que quer matar o corpo hóspede. E a carreira desses indivíduos está limitada a um momento onde elas acabam com [à área] onde eles estão atuando.

É um projeto de destruição. Você coloca um ministro do Meio Ambiente que está ligado ao lobby do desmatamento. Você tem um secretário da Cultura que fala de ideologia, mas ele critica ideologia de esquerda propondo uma de direita.

BBC News Brasil - Então o objetivo dele não seria de livrar da ideologia, mas instalar uma de direita?

Muniz - Nenhum elemento do atual governo está tentando conversar com a população. Isso também é uma coisa comum de vários governos atuais. Eles não estão mais governando o país, eles estão governando dentro do segmento que os elegeu. E isso é muito ruim. Nisso, para uma ideia ser boa, basta ser o contrário da outra.

Eu não vejo dentro do discurso dos atuais secretários e dos ministros do governo Bolsonaro nenhum plano concreto de construção. É só destruição, é só desmantelamento. É fácil, você coloca uma criança de 5 anos com um martelo e ela vai quebrar o que tiver pela frente. Agora, para você construir alguma coisa...

É um projeto puramente ideológico e demagogo, focado em destruir tudo o que foi construído antes, e até o que não foi construído pela esquerda. Agora, para destruir qualquer coisa eles chamam de "esquerda"... O fato de você demonizar uma coisa por ter uma referência política contrária à sua faz com que você se dê o direito de destruir aquilo.

E quando você está falando de cultura, é uma estrutura orgânica, que se constrói independente de políticos, através de décadas. A cultura não é um projeto de esquerda, é um projeto popular. As pessoas vão ver o que elas querem.

Falar que você tem que criar uma nova cultura... Isso é uma tremenda de uma asneira. Uma coisa que o Roberto Alvim não vai conseguir fazer é destruir a cultura. Ele vai gerar situações para ela se transforme, talvez de uma forma extremamente contrária ao que ele espera.

BBC News Brasil - Como assim?

Muniz - Como resposta. Quando você começa a combater um tipo de cultura, historicamente, a consequência disso é ela se fortalecer. A cultura muda, mas isso não vem de um partido, de um homem, mas de toda uma população que está pensando junta.

Parece que tem uma campanha para acabar com todo e qualquer tipo de prazer, de beleza. O Roberto Alvim, na fala dele na Unesco, a parte mais poética foi ele ter conseguido ter citado as palavras "beleza" e "elegância" e "Bolsonaro" na mesma frase. Isso eu nunca vi antes.

Me parece que qualquer coisa relacionada com prazer, com beleza, com alegria está sendo sistematicamente eliminada da vida do brasileiro nesse instante. E isso não pode dar certo. Se você não tem razões pela qual viver, isso não é vida, é sobrevivência.

Então, essas pessoas têm um potencial de destruição, mas ninguém consegue transformar a cultura da forma como eles querem. Quando você tem esse tipo de guerra cultural, os artistas se transformam em heróis culturais.

Pô, o cara [Sérgio Camargo, novo diretor da Fundação Palmares nomeado pelo governo Bolsonaro] fala uma coisa horrível, nojenta, do Martinho da Vila, um grande intelectual brasileiro... Compara o Martinho da Vila com esse cara, que eu não sei nem o nome. E o que acontece? O Martinho da Vila ganha meia página no jornal.

Cada vez que você cria um inimigo cultural, você faz dele um herói. E aí você reforça suas convicções com sua base política. O Bolsonaro, o Alvim, vão ficar bem com a base deles, o artista é elevado a uma posição de herói. Eles acham que vão falar mal do artista e vão acabar com eles? Estão extremamente enganados. Elas vão botar a luz nos artistas, mesmo os que não merecem, e quem sofre com isso são sempre as instituições culturais.

O museu perde verba... É como uma guerra, e o campo de batalha são as instituições culturais, e são elas que ficam em ruínas.

BBC News Brasil - Você citou o novo diretor da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que disse que o movimento negro tem que acabar, eu vi que você também comentou a nomeação dele nas redes sociais.

Muniz - Eu defendo o direito desse cidadão de ter a opinião que ele quiser. O fato dele ser negro não impede ele de ter opiniões conservadoras, ou de direita. Mas como pode uma pessoa que tem um pensamento desse querer ocupar uma instituição devotada a direitos humanos? Que tipo de pessoa faz isso? Uma pessoa que pensa como ele aceitar uma instituição como a Fundação Palmares? Não tem como. É um ironia isso, uma piada.

Se essas convicções fossem honestas, ele nunca aceitaria uma posição dessa. Eu não aceitaria uma posição numa instituição que vai contra as minhas ideias. Aí você vê que é pura politicagem.

BBC News Brasil - No Brasil, a produção de arte é muito atrelada a incentivos públicos. Como você enxerga o uso incentivos públicos para arte, como a Lei Rouanet?

Muniz - Não existe instituição cultural que não opere no vermelho. Foi ventilado que o Museu do Amanhã dá prejuízo. Mas todas as instituições culturais dão prejuízo. E os gestores têm que fazer o que eles podem. Nos EUA eles pedem aos artistas o tempo todo para doar obra para leilão.

A Lei Rouanet foi extremamente positiva no cenário cultural brasileiro, mas ela não evoluiu. Acabou favorecendo um monte de instituições, bancos... Os artistas não se beneficiaram dela tanto quanto os negócios.

Grandes corporações ditavam tanto o programa [a ser patrocinado] quanto a verba [que o artista ia receber]. Foi importante, continua sendo importante para o fomento de arte, mas tinha que ter sido revisitada e atualizada. O que acontece é que o apoio ficou muito atrelado às instituições [patrocinadoras].

Nos EUA você pode fazer deduções pessoais do imposto de renda para projetos que você queira patrocinar. Então, você falar que nos EUA não tem isso, como já falaram, que aqui os artistas "mamam nas tetas do governo"... Artista trabalha. Quem mama na teta do governo é político, que passa 30 anos no Congresso e não consegue passar duas leis que tenham algum tipo de significância para a população.

BBC News Brasil - Algumas pessoas criticam que artistas como você, que têm sucesso financeiro, sucesso de crítica, usem mecanismos de incentivo.

Muniz - Eu usei a Lei Rouanet algumas vezes para fazer livros, e era muito bom, porque os livros eram distribuídos, iam para o mercado com um valor acessível. Eu nunca ganhei um tostão vendendo livro, mas tive como divulgar meu trabalho. Eu tenho uma experiência de 30 anos. Se eu for fazer um livro, esse livro é bom para ajudar novos artistas, para poder divulgar o trabalho que eu estou fazendo para outras gerações.

É parte da cultura também que se transmita. O que eu sou contra, por exemplo, é financiar o Cirque du Soleil através da Lei Rouanet e não dar ingresso para ninguém. Aí é diferente. Os artistas quando têm essa ajuda têm que fazer esse dinheiro valer para a população, espetáculos acessíveis.

BBC News Brasil - Recentemente tivemos muitos relatos de filmes, peças e obras retiradas da programação de eventos de instituições públicas. Você acha que estamos vivendo um momento de censura, como dizem os artistas que foram retirados das mostras?

Muniz - São formas de você censurar. É impedir a distribuição, é impedir financiamento. Não existe simplesmente aquela censura sumária da época da ditadura, em que os censores simplesmente riscavam o que não era para ser visto. Existem formas mais sofisticadas de você censurar a produção artística, e isso está começando a acontecer no Brasil. E esse começo já é alarmante.

BBC News Brasil - Você cresceu em uma família sem muitos recursos e conseguiu se tornar um dos artistas brasileiros mais reconhecidos no exterior. Histórias como a sua normalmente são usadas como argumento de quem defende a "meritocracia", para justificar a ideia de "quem quer, consegue". Você concorda com isso?

Muniz - Não. Não acho que "quem quer, consegue", é uma combinação de fatores. Você pode ter bastante talento, pode ser muito trabalhador, e eu sou, a vida inteira eu me dediquei à mesma coisa, que é a verdade. E como a gente lida com versões da verdade. Mas eu tive muita sorte. Se eu não tivesse tido sorte, eu não estaria onde eu estou.

Não posso ser idiota e ficar imaginando que o que aconteceu comigo poderia acontecer com qualquer um. Senão você ia ter milhões de Vik Muniz, porque tem milhões de pessoas que têm muito mais talento do que eu, que deviam estar vivendo do que fazem com sucesso.

No meu caso eu tive bastante sorte, no caso de quase todo artista. Tem a ver com mérito, sim, tem a ver com trabalho, mas justamente pelo sorte que você teve você tem a responsabilidade de fazer isso da forma mais verdadeira.

BBC News Brasil - Você é um dos artistas brasileiros mais proeminentes internacionalmente. Como enxerga a repercussão do atual momento político do Brasil no exterior?

Muniz - É vergonhosa. Isso não justifica nenhum dos processos políticos como a Lava Jato nos últimos dez anos. Mas a imagem dos Brasil nos últimos cinco anos teve uma reversão escandalosa. As pessoas citavam o Brasil no contexto da Nova Zelândia, era um paraíso, onde as pessoas eram bacanas, tinha design, tinha cultura, tinha música, a produção cinematográfica era interessante.

Artistas brasileiros como eu, artistas plásticos, tinham uma penetração no cenário cultural internacional e a imagem que se fazia do Brasil... Quando você falava "eu sou brasileiro", você era cool, você era o cara, todo mundo queria saber de você.

O que tem acontecido no Brasil agora coloca o Brasil ao lado do Iraque e da Arábia Saudita como um lugar inóspito, onde a população é controlada por ideologia, um lugar que tem uma nuvem ideológica encobrindo o sol que antes brilhava. O interesse pelo Brasil caiu, você vê isso refletido até no mercado.

O que os governantes não percebem é que quem representa o Brasil é a cultura, não os políticos. Quando a gente pensa em Brasil a gente pensa em Oscar Niemeyer, em Tom Jobim, em Beatriz Milhazes, na Adriana Varejão, no Grupo Corpo. Ninguém lembra do Jânio Quadros. Ninguém sabe [no exterior] quem é o Silas Malafaia.

O Brasil é a cultura brasileira, e tudo o que fizerem para transformar isso em um projeto monolítico, que representa uma visão somente, está conspirando contra a imagem do Brasil lá fora. Tudo o que você faz contra a cultura você faz contra a identidade nacional. Isso reflete na política internacional, na política econômica.

BBC News Brasil - Tivemos uma polêmica em relação à homenagem da Flip (Festa Literária de Paraty) à poeta Elizabeth Bishop, que já defendeu a ditadura militar. Isso reavivou a velha discussão sobre se a arte deve ser separada do autor. Como criador de uma arte com um processo de produção que é tão importante quando o resultado final, você acha que é possível separar o autor da obra?

Muniz - Não. Não é possível separar o autor da obra. Eu tenho opinião política, e você está falando comigo justamente por causa disso. Mas as minha opiniões políticas não são melhores que as suas. Nem que a do policial ou a do padeiro. Elas só são diferentes, porque são opiniões.

O que interessa não são opiniões. São fatos. E como a gente se relaciona com fatos. Eu procuro, justamente por você não conseguir desassociar o que eu faço de mim mesmo, eu procuro isentar minha obra de opiniões. O máximo que eu posso fazer é dar indícios de coisas que estão acontecendo e apresentá-las de uma forma que as pessoas possam refletir por si mesmas. O que a arte faz é justamente isso, criar espaço para pensamento, para dialética.

BBC News Brasil - O escritor Mia Couto disse que a literatura, ou seja, a arte, representa a realidade melhor que os jornais.

Muniz - Eu não acho, não. A arte não representa a realidade. Os jornais representam a realidade, ou pelo menos representavam. O que a arte faz é ajudar a discutir o que está acontecendo.

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