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"Holocausto": A série americana que mudou como alemães veem o genocídio

A minissérie dramatizou o genocídio nazista através da história fictícia da família Weiss  - Alamy
A minissérie dramatizou o genocídio nazista através da história fictícia da família Weiss Imagem: Alamy

Damien McGuinness

De Berlim (Alemanha)

30/01/2019 17h14

Uma minissérie de 1979 estrelada por Meryl Streep, na TV americana, mudou a forma como os alemães viam sua própria história.

"Holocausto", o nome dado à produção, levou os horrores dos crimes nazistas à sala de estar das pessoas e acabou se tornando um termo de uso comum na língua alemã.

Cerca de 40 anos depois, ele foi reexibido, neste mês, na TV da Alemanha --e se mostrou tão relevante quanto antes.

Um terço da população da Alemanha Ocidental, cerca de 20 milhões de pessoas, assistiu a pelo menos parte da série de quatro capítulos em 1979.

O que foi o Holocausto e o que essa série mostra?

"Holocausto" é como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como cidadãos de etnia polonesa, soviéticos, homossexuais, ciganos e prisioneiros de guerra de várias nacionalidades, além de Testemunhas de Jeová e outras minorias --durante a Segunda Guerra Mundial-- a partir de um programa de extermínio sistemático executado pelo Partido Nazista.

Tropas soviéticas libertaram sobreviventes famintos em Auschwitz em janeiro de 1945  - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

Para retratar esse episódio, a minissérie conta a história de uma família judia fictícia --Karl Weiss, um bem-sucedido médico berlinense, sua esposa e seus filhos-- mostrando sua trágica trajetória da riqueza burguesa para as câmaras de gás onde inúmeros judeus foram mortos.

Uma história paralela foca em Erik Dorf, um advogado desempregado que inicialmente é apolítico, mas consegue um emprego na SS de Hitler --a "tropa de choque" militar nazista-- e se torna parte da máquina de matar.

O impacto de ver as vítimas dos nazistas

A série provocou um debate nacional na Alemanha. Pesquisas mostram que 86% dos espectadores discutiram o Holocausto com amigos ou familiares depois de a assistirem.

Após a exibição, dez mil alemães ligaram para a emissora WDR, da Alemanha, muitos deles emocionados para expressar seu choque e vergonha em relação a esse capítulo da história. Em alguns casos, ex-soldados entraram em contato para confirmar detalhes dos crimes nazistas.

Meryl Streep interpretou uma mulher cristã chamada Inga, casada com um dos filhos de Weiss  - Alamy - Alamy
Meryl Streep interpretou uma mulher cristã chamada Inga, casada com um dos filhos de Weiss
Imagem: Alamy

Esta foi a primeira vez que uma produção de grande porte retratou a vida das vítimas de Hitler.

Até então, documentários sérios haviam tratado de fatos e números, e, durante a década de 1960, o debate se concentrou principalmente nos responsáveis por esses crimes - impulsionado em parte pelos julgamentos de Auschwitz, realizados em Frankfurt entre 1963 e 1965.

"Sobreviventes estiveram nos julgamentos de Auschwitz e nem sequer foram entrevistados pelos jornalistas. Ninguém se importava com as vítimas. Isso mudou com (a série de TV) 'Holocausto'", diz o historiador Frank Bösch.

Ele escreveu um livro sobre os principais eventos de 1979 que transformaram o mundo e aponta esta produção de TV como um deles, junto com a Revolução Iraniana e a eleição de Margaret Thatcher.

A minissérie conta histórias emocionantes de pessoas comuns - levando os espectadores a se identificarem mais facilmente e tornando o conteúdo mais acessível para a sociedade.

Inusitadamente para esse tipo de produção, as pessoas que cometiam esses crimes não aparecem demonizadas como sádicas assustadoramente diabólicas, mas sim como alemães comuns, engrenagens na máquina nazista, que contribuíram para o Holocausto com pequenos atos cotidianos de crueldade ou covardia.

O ator James Woods (no centro) interpretou o artista judeu Karl Weiss, casado com Inga  - Alamy - Alamy
O ator James Woods (no centro) interpretou o artista judeu Karl Weiss, casado com Inga
Imagem: Alamy

A série foi controversa e quase não chegou à Alemanha.

Ela foi produzida pela emissora de TV americana NBC e no ano de estreia foi assistida por 120 milhões de telespectadores no país de origem.

Comentaristas alemães a criticaram, chamando de "novela melodramática brega que banalizou o Holocausto".

Esquerdistas acusaram as emissoras americanas de cinicamente explorar os crimes nazistas só para ganhar audiência. Nacionalistas de direita se queixaram de que as vítimas alemãs da guerra estavam sendo esquecidas.

Neonazistas chegaram a sabotar dois transmissores de televisão na tentativa de impedir a exibição da série na Alemanha.

Karl Weiss, personagem da série Holocausto, em trabalho forçado no campo de concentração de Buchenwald  - Getty Images - Getty Images
Karl Weiss, personagem da série Holocausto, em trabalho forçado no campo de concentração de Buchenwald
Imagem: Getty Images

Até hoje, a série ainda é alvo de críticas. Alguns sobreviventes do Holocausto dizem que ela omite "detalhes desagradáveis" da história e é simplista. Mas o fato é que a produção transformou a maneira como a Alemanha lida com o próprio passado nazista.

Inicialmente, algumas autoridades temiam que a série despertasse sentimentos anti-alemães no exterior, diz o professor Bösch. Mas o exame de consciência que ela provocou levou ao respeito o modo como a Alemanha enfrenta seus crimes passados.

Alguns meses após a transmissão da série, a Alemanha modificou normas jurídicas para permitir que os nazistas fossem julgados por sua participação no Holocausto.

E o debate nacional sobre o tema aumentou a sede por conhecimento.

Durante a década de 1980, as escolas exigiram mais material didático, os historiadores alemães começaram a focar mais no Holocausto e os campos de concentração abriram as primeiras grandes exposições e memoriais.

Um lembrete oportuno para os alemães

Agora, enquanto a minissérie chega ao fim na TV, a Alemanha vem reavaliando como o drama mudou o país 40 anos atrás.

A recordação do Holocausto e as palavras "nunca mais" se tornaram princípios fundamentais da identidade política da Alemanha moderna.

Mas o partido de extrema-direira Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) diz que os alemães devem deixar o passado para trás e seguir em frente.

No ano passado, Alexander Gauland, líder do AfD, descreveu o regime nazista como "mero excremento de pássaros em mais de mil anos de história alemã de sucesso".

E menos da metade dos estudantes alemães sabem o que foi Auschwitz --o maior complexo de campos de concentração do regime nazista-- de acordo com uma pesquisa da Fundação Körber.

Quarenta anos após a série "Holocausto" ter sido transmitida pela primeira vez na Alemanha, produções que destacam os crimes nazistas ainda são necessárias.