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A mensagem racista escondida em uma obra de arte famosa

Kara Walker tem um olhar inabalável sobre as exploração sexual e racial nas silhuetas da arte folclórica americana - Mark Alexander/Sikkema Jenkins & Co/Joshua White
Kara Walker tem um olhar inabalável sobre as exploração sexual e racial nas silhuetas da arte folclórica americana Imagem: Mark Alexander/Sikkema Jenkins & Co/Joshua White

Kelly Grovier

19/08/2018 17h53

Estudos dos primeiros desenhos nas paredes revelam que nossos ancestrais paleolíticos fizeram as primeiras tintas com a ajuda do fogo, forjando a partir de ossos um pigmento cor de carvão que abriu a porta para a arte. Toda aplicação posterior do preto na história da cultura ecoa suas origens ritualísticas e traz um senso de ressurgência: esqueletos queimados como símbolo de vida.

Desde as silhuetas definidas dos vasos pretos da Grécia Antiga até os véus escuros da Catedral de Rothko, três milênios e meio depois, essa cor significou a transformação da carne fugaz em um emblema permanente. Diferentemente de vermelhos emotivos ou azuis sombrios, o preto é o tom padrão que damos a palavras e letras. É uma sombra que lemos mais do que sentimos.

Associado superficialmente com o luto, o macabro e com a maldade, o preto tem em si um paradoxo inesperado de otimismo. Toda história sobre origens, da Gênesis ao Big Bang, começa com uma escuridão como a base para o brilho de luz que vem em seguida. O preto não é simplesmente onde começamos, é também o antes de começarmos. Sem o preto, nem as estrelas nem a alma teriam como se destacar.

A história da palavra em si diz muito e pode ser rastreada ao seu antepassado proto-indo-europeu bhleg, que significa "raio", "brilho" e "iluminação". Ainda que, visualmente, possa denotar a completa absorção de luz, em um nível artístico mais profundo, o preto é sinônimo de esplendor. Onde quer que encontremos o preto na arte, devemos olhar além do que é triste, soturno ou sinistro na superfície para ver o esplendor brilhando por dentro. 

Os egípcios antigamente estavam acostumados com essas sutilezas de pensamento, o que fica evidente no rosto de Anúbis, o deus responsável por levar as almas dos mortos à vida após a morte. Embalsamador da carne e julgador das almas em partida, Anúbis era ele mesmo um ser híbrido, uma mistura curiosa de homem e chacal. Sua cabeça canina era invariavelmente retratada por artistas da mesma cor horripilante que a carne humana adquire durante o processo de mumificação, que era supervisionado por Anúbis.

Como qualquer nativo do vale do Nilo saberia, porém, o preto intenso é também o tom do mais fértil e rico sedimento. O semblante preto de Anúbis tinha uma aparência em duas direções, à fragilidade de nossa pele e à fecundidade da alma.

Saltemos a Caravaggio. A incansável escuridão a partir da qual suas duas versões da Ceia em Emaús (1.601 e 1.606) são escavadas demonstra uma sensibilidade aguçada às qualidades místicas da cor preta.

Ambas telas imaginam o instante quando o Cristo ressuscitado, viajando incógnito, revela-se para dois de seus desatentos discípulos, antes de desaparecer dramaticamente de vista. Em ambos os trabalhos, o branco determina a temperatura espiritual da cena extraordinária e se funde misteriosamente ao véu semipermeável entre mundos que Cristo sozinho atravessa.

Na imaginação de Caravaggio, quanto mais profunda é a iluminação espiritual, mais escura é sua chama. Um truque que ele pode ter aprendido com outro expoente da Renascença italiana, Michelangelo Buonarroti. Considere, por exemplo, os afrescos do teto da Capela Sistina, cujo efeito inspirador não depende tanto da incorporação do pigmento preto com o reboco úmido, mas sim com as outras escuridões do espaço no qual se observam esses afrescos.

De volta ao preto

Desenhados para cintilar de forma sincronizada com as velas consumidas lentamente durante os serviços da semana de Páscoa, os afrescos de Michelangelo (o primeiro que, didaticamente, mostra a "separação da luz a partir da escuridão") são dotados de uma vibração contra a qual uma escuridão quase palpável pulsava. O rebaixamento e a elevação sobre os fiéis era tão parte do poder da obra quanto a grande festa de músculos que Michelangelo desenhou sobre eles.

Apesar de Michelangelo e Caravaggio terem determinado o tom para a miríade de majestades da escuridão que os seguiu na História da arte ocidental (desde o tom das sombras do olhar penetrante de Rembrandt em sua série de autorretratos até o grotesco das pinturas escuras de Goya), é importante lembrar que nem todo buraco negro é profundo.

Alguns podem achar difícil olhar diretamente no olho do pintor americano James McNeill Whistler com seu icônico retrato de sua mãe sentada (pintado em 1871) sabendo, como sabemos, da propensão do artista para fazer comentários racistas e seu gosto por dar tapas na cara dos abolicionistas. O artista, é claro, não chega ao mesmo nível de seu irmão, que usou o uniforme cinza da Confederação em seus esforços inúteis de perpetuar a escravidão, mas o fato traz um certo contexto.

A própria mãe de Whistler, que uma vez tentou impedir a esposa negra de seu tio e seus filhos de adquirirem terras da família, torna-se um tema irônico para uma pintura cujo título oficial, olhando em retrospectiva, parece mais do que um pouco carregado racialmente: "Arranjo em Cinza e Preto".

Mas é a pintura de uma geração subsequente de artistas, o "Quadrado Negro" (1915) do supremacista russo Kazimir Malevich --que muitas vezes é creditado como o primeiro trabalho abstrato pintado--, que revela quão facilmente a cor pode coalhar da luminosidade cheia de alma para algo mais sombrio. Em 2015, uma análise nova do celebrado trabalho (que Malevich disse que significava onde "o verdadeiro movimento da existência começa") encontrou os traços de um gracejo fanático que o artista escondeu por baixo do verniz.

Acredita-se que as palavras escondidas "batalha dos negros", covardes demais para se mostrarem completamente, seriam uma alusão a uma frase racista --"negros lutando à noite"-- usada por um humorista francês em um quadrinho com um quadrado negro em 1987. Com essa descoberta decepcionante, que levou a uma recontextualização do trabalho como obra pioneira para uma desventura terrível, a luz interna de uma pintura que por décadas foi a fonte de meditações cheias de significados de repente desvaneceu.

Mais recentemente, o caminho escuro iluminado pela luz negra de Anúbis e Caravaggio, Michelangelo e Rembrandt tem sido mantido aceso pela genialidade da maestra multimídia americana Kara Walker e do artista britânico Mark Alexander. Desde os anos 1990 e com seu hipnotizante mural "Idos, Um Romance Histórico da Guerra Civil como Ocorreu entre as Coisas Sombrias de Uma Jovem Negra e Seu Coração" (1994), os recortes crus de Walker jogam uma luz penetrante no preconceito e na misoginia quando boa parte do mundo da arte prefere deixá-los no escuro.

Mark Alexander - Mark Alexander - Mark Alexander
O artista britânico Mark Alexander refez o Retrato de Dr. Gachet, de Van Gogh, inteiramente na cor preta
Imagem: Mark Alexander

A reinvenção de Alexandre do retrato que Vincent Van Gogh fez de seu médico, Dr Gachet (que não foi visto em público desde que seu dono, o empresário japonês Ryoei Saito, morto em 1996, ameaçou ser cremado com a tela pós-Impressionista) é uma aula magna da capacidade duradoura do preto de fazer renascer o espírito da perda física. O misterioso "Gachet Mais Preto" (2006) mostra o resgate de cada pincelada do original do Van Gogh para esculpir um olhar que brilha de qualquer que seja o reino ainda não descoberto que espera por nós no grande além.

Se Walker e Alexander (assim como contemporâneos como o artista polonês Miroslaw Balka e o escultor indiano Sheela Gowda, que construíram interiores pretos arrojados) são os verdadeiros herdeiros de uma tradição que busca compartilhar o esplendor do preto um artista conseguiu em vez disso deixar uma marca pessoal nos mistérios eternos da cor.

Em 2014, o artista britânico de origem indiana Anish Kapoor começou a fazer experimentos com uma das tonalidades mais escuras do preto, um tom que ele mesmo controla e foi patenteado com a marca Vantablack (a origem do nome remonta ao acrônimo de Vertically Aligned NanoTube Arrays, que descreve a construção química da substância em inglês). Em termos ópticos, Vantablack é um preto comum mais bombado e cria em si mesmo um enervante ricochete de luzes que, uma vez encurraladas, acabam gastando-se no calor invisível.

Com a patente do uso de Vantablack, que foi recentemente usada para escurecer as paredes de um pavilhão dos Jogos Olímpicos de Inverno em PyeongChang, Kapoor se tornou de maneira controversa o guardião de ao menos uma parte da mansão do enigma atemporal do preto, controlando quais objetos e imagens podem entrar ali ou não.

O preto mais profundo transcende os ciúmes das leis de propriedade intelectual. O preto é a brilhante linhagem de sangue que corre através da humanidade --a tinta luminosa com a qual rabiscamos as paredes dos céus para nossos descendentes verem: "Não me esqueça. Eu estive aqui".