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Aline Diniz


Coronavírus X greve de roteiristas: como ficam as séries e filmes de 2020?

Colunista do UOL

18/03/2020 20h22

Resumo da notícia

  • A greve de roteiristas de 2008 paralisou a produção de séries em Hollywood e mudou a TV para sempre
  • Demissões, prejuízo financeiro e a queda da audiência permearam um dos períodos mais conturbados da indústria
  • Como a crise do coronavírus se compara à greve?
  • Lançamento de filmes, eventos, produções muito mais foram adiados devido à preocupação com a contaminação da população
  • O que vai acontecer com o cinema e a TV quando o COVID-19 passar?

O coronavírus chegou para balançar o mundo de um modo geral: a economia está em frangalhos, o dólar chegou a R$ 5, as empresas do mundo todo estão liberando seus funcionários para trabalhar de casa, quarentenas de isolação e até as fronteiras de certos países estão fechadas. Mas quem somos nós para falar de tudo isso? Conhecemos mesmo é do mundo do entretenimento, então vamos comparar a situação atual com a última grande crise que assolou o mercado audiovisual: a greve de roteiristas de 2008.

Convidei minha amiga e editora do UOL Liv Brandão para esse artigo especial sobre um momento tão delicado na indústria que emprega não só a mim, mas a muitos conhecidos queridos e próximos. Um texto pensado a duas cabeças, produzido a quatro mãos e escrito com o coração na garganta de pensar o que pode acontecer num futuro ainda tão incerto.

Ainda é cedo para saber o tamanho das consequências do coronavírus para a indústria do entretenimento, mas dá para traçar um paralelo entre a greve dos roteiristas que rolou nos Estados Unidos entre 2007 e 2008, e mudou a TV para sempre. Durante cem dias, 12 mil roteiristas de TV e cinema paralisaram seus trabalhos em busca de melhores condições —na época, o sindicato queria participação na vendagem de DVDs e de "novas mídias", ou seja, downloads pagos, distribuição on-demand e o streaming, que ainda engatinhava e acabou ganhando muita, muita força.

Julia Louis-Dreyfus protestando direitos dos roteiristas em 2008 - Matthew Simmons / Getty - Matthew Simmons / Getty
Imagem: Matthew Simmons / Getty

Com apoio de nomes como Amy Poehler, Anna Paquin, Ben Stiller, David Duchovny, Ellen Pompeo, Hugh Laurie, Jim Parsons, Julia Louis-Dreyfus, Mel Gibson e Robin Williams (entre muitos outros!), a greve, claro, obrigou os canais e estúdios a pararem a produção de séries e filmes —mas a mais afetada foi a TV. Grandes sucessos da época, como "House", "ER", "24 Horas", "The Big Bang Theory", "Two and a Half Men" e "How I Met Your Mother", simplesmente ficaram sem ter quem escrevesse seus episódios.

No total, mais de 60 séries foram interrompidas: "Heroes" (lembra de quando ela era boa?) teve apenas 11 dos 24 episódios previstos para a segunda temporada, os talk shows da madrugada desapareceram da grade e premiações como Globo de Ouro e People's Choice ou foram canceladas ou exibiram compactos gravados.

O prejuízo não foi apenas financeiro (economistas chegaram a estimar US$ 2.1 bilhões): mais de 37 mil profissionais que trabalhavam nesses programas —produtores, assistentes e outras pessoas de cargos mais baixos— ficaram sem emprego e, obviamente, sem novos episódios das séries queridinhas do público para exibir, a TV americana viu sua audiência cair e muito. Papo de 10% no horário nobre, o que era muita coisa aos olhos de quem pagava a conta, os anunciantes.

Para completar as grades com conteúdo original, os canais recorreram a um tipo de programa que não exigia roteiro e cujo apelo já vinha crescendo desde o início da década: os reality shows. Foram mais de cem —100!!!!— novos programas, fosse de encontros, competições, reformas de casa só na temporada 2007-2008. Sem muita alternativa, o público acabou viciando no formato, que atingiu recordes de audiência até então nunca vistos. A coisa deu tão certo que em 2015 foram exibidos na TV americana 750 reality shows, mais da metade deles inéditos.

A busca por séries e filmes no streaming também criou novos hábitos nas rotinas dos consumidores. Afinal, em vez de ter que parar na frente da TV em horário específico para assistir a um determinado programa, as pessoas descobriram a maravilha de organizar a própria vida e consumir tudo em seu tempo —o que consolidou o tal do binge-watching (ou a boa e velha maratona, que antes cabia à programação dos canais) de uma série. E depois que você tem acesso à boa vida, fica difícil voltar ao tempos de vacas magras, certo? A TV inteira teve que se adaptar, o streaming abraçou produções originais (você disse "Orange is the New Black", "Fleabag", "Marvelous Mrs Maisel"?) e absolutamente tudo mudou de lá para cá.

A greve nos deu 'Breaking Bad' como conhecemos

Outro "case" digno de nota da última paralisação —talvez o mais importante, analisando o cenário 12 anos depois— foi a mudança de "Breaking Bad". A série de Vince Gilligan estava em sua primeira temporada, uma comédia de erros que não fedia e nem cheirava. A greve impediu que a série tivesse seus dois últimos episódios. Neles, era prevista a transição definitiva de Walter White do professor bundão que sofria de câncer e estava cheio de dívidas pro rei do tráfico de drogas Heisenberg. Assim mesmo, de uma hora para outra, como um band-aid arrancado. O período de "quarentena" fez com que os roteiristas desacelerassem a trajetória de Walter White. E, convenhamos, acompanhar a transformação do personagem de Bryan Cranston foi uma das melhores coisas da série, hoje considerada uma das melhores da história da TV.

Por mais que os sintomas da crise do coronavírus sejam muito semelhantes aos da greve de roteiristas americanos em 2008, as consequências são muito mais amplas. Enquanto a paralisação do WGA impactou fortemente a indústria de Hollywood —claro, trazendo repercussões para o resto do mundo devido à sua potência, a pandemia do Covid-19 paralisou todas as indústrias. Pela primeira vez na história da televisão brasileira vemos a Globo interrompendo suas gravações de novelas e séries, encurtando temporadas como a do "Fora de Hora" e criando novos programas dedicados à cobertura do caso.

Friends - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Nos Estados Unidos, a produção de diversas séries foi pausada, sem previsão de retorno. "Late night shows", "morning shows", séries de TV, filmes... até o aguardado especial de "Friends"! Foi praticamente tudo paralisado, estreias foram adiadas, cinemas estão fechados, eventos esportivos foram cancelados, shows foram remarcados. Não há mais produção de conteúdo. Isso impacta novamente no número de empregos gerados pela demanda, possivelmente levando ao desemprego em massa nas próximas semanas e meses.

Enquanto todos estão de quarentena, alguns limitados legalmente às fronteiras de seus países, outros voluntariamente se isolando dentro de casa, quem vai se beneficiar são os serviços de streaming, que verão um pico absurdo ao longo dos próximos meses. E talvez a maior diferença entre a greve de 2008 e a crise de 2020 seja na produção de reality shows —mesmo que o "Big Brother" ao redor do mundo tenha iniciado sua nova temporada antes da pandemia realmente se alastrar, protegendo os participantes na casa, é inviável produzir qualquer coisa nesse momento, já que é necessário muito mais do que 20 pessoas em qualquer set de gravações.

Os efeitos já sentidos do coronavírus

As bilheterias cinematográficas estão sofrendo —e muito. Segundo o Box Office Mojo, o final de semana de 13 a 15 de março nos Estados Unidos foi o pior desde 1995, com os cinco primeiros filmes arrecadando somente US$ 30,7 milhões —cifra que, em condições normais, é facilmente atingida por qualquer filme que esteja entre os top 5.

Além disso, festivais como o Lollapalooza foram adiados e o segundo semestre de 2020 verá um dos maiores ápices de eventos simultâneos, possivelmente sobrecarregando hotéis e transportes das cidades brasileiras como nunca antes visto. Já imaginou os públicos do Lolla e da CCXP, de todos os cantos do Brasil, convergindo em São Paulo durante as mesmas datas? Isso sem pensar que algumas dessas pessoas iriam aos dois eventos. É algo nunca antes visto.

Muita coisa já mudou desde que as medidas preventivas contra a disseminação do coronavírus começaram, mas para o público o impacto vai ser verdadeiramente sentido quando 1) acabar o "estoque" de episódios gravados das séries e a fonte literalmente secar, criando uma programação baseada quase que exclusivamente de reprises, e 2) quando for retomada a vida social normal e todas essas produções paralisadas voltarem a ativa. A agenda dos atores, produtores e diretores de Hollywood já é lotada, para conciliar, então... vai levar um bom tempo até toda a situação normalizar totalmente. Além do pico absurdo de conteúdo adiado, assim como eventos remarcados, que será lançado.

A indústria comenta que o segundo semestre será um dos mais atribulados, mas a grande questão aqui é encaixar tudo isso novamente em um calendário que faça sentido. Os próximos anos serão de recuperação, reformulação e reestruturação para a indústria do entretenimento como um todo.

Aline Diniz