UOL Entretenimento

Lisette Lagnado: Para curadora, Bienal deve formar um espírito do tempo

da Redação

Marco Hovnania/UOL

Lisette Lagnado no prédio da Bienal, com obra do artista Gordon Matta-Clark (22/09/06)

Lisette Lagnado no prédio da Bienal, com obra do artista Gordon Matta-Clark (22/09/06)

A pesquisadora e crítica de arte Lisette Lagnado, 45, foi escolhida curadora geral da Bienal Internacional de São Paulo por meio de um concurso de projetos realizado pela Fundação que mantém a mostra. Com Rosa Martinez, Cristina Freire, Adriano Pedrosa, José Roca e Jochen Volz formou o time que preparou a exposição "Como Viver Junto", que será aberta ao público em 7 de outubro com obras de uma centena de artistas. Assina a montagem da mostra a arquiteta Marta Bogéa.

Mestre em Comunicação e Semiótica e doutora em Filosofia, Lisette Lagnado já foi repórter e editora de publicações de arte. Seu primeiro grande trabalho em curadoria foi a catalogação da obra do artista Leonilson (1957-1993), que resultou em mostra retrospectiva e no livro mais importante já publicado sobre o artista, que se chamou "São tantas as Verdades". Lisette curou também a exposição de Iberê Camargo (1914-1994) na Bienal do Mercosul, em 1999, e sistematizou grande parte da produção teórica de Hélio Oiticica (1937-1980), o autor do "Programa Ambiental" que é objeto de sua tese de doutorado. É co-editora da revista cultural eletrônica Trópico, publicada pelo UOL.

Na entrevista a seguir, Lagnado conta como se apropriou do tema "Como Viver Junto", título de uma série de seminários realizados pelo semiólogo Roland Barthes (1915-1980), na Sorbonne, em Paris, nos anos 1970; como o tema se conecta ao projeto criativo de Hélio Oiticica e para quem é feita a Bienal de 2006.

UOL: Você se considera brasileira?
Lisette Lagnado:
Eu nasci em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Cheguei ao Brasil em dezembro de 1974. Tive longa infância na África e uma adolescência no Brasil.

Considero-me brasileira, de certo modo, assim como me considero uma "sem terra", sem nacionalidade. De qualquer forma, é para esse país que eu trabalho, esse país é a minha paixão.

Neste sentido, Hélio Oiticica foi muito importante para mim. Quando eu fiz meu doutorado sobre o Hélio Oiticica, no começo eu me senti estrangeira perante a obra, eu não sabia se ia dar conta. Ele foi um grande portal para eu entrar no Brasil.

A gente não chega a um país quando chega ao aeroporto ou quando recebe os papéis de permanência. A gente tem que passar por um ritual cultural, e esse ritual de passagem eu atravessei no doutorado com o Hélio.

UOL: Qual foi a Bienal mais marcante para você?
Lisette Lagnado:
Foi a primeira que eu vi, em 1981, curada pelo Walter Zanini.

Eu e a Márion Strecker editávamos a revista "Arte em São Paulo", que herdamos do Luiz Paulo Baravelli. Nossa primeira matéria foi sobre o Hervé Fischer, um artista que tinha fundado a arte sociológica na Sorbonne e que já representava uma relação da arte com as intervenções urbanas.

Talvez isso explique, de alguma forma, porque, para mim, um artista que não tem um ateliê e que intervém na cidade é uma coisa completamente incorporada, que eu entendo como "artista".

Nesta mesma Bienal, havia duas obras de brasileiros que eu nunca vou esquecer, uma é do Cildo Meireles, "A Bruxa", uma grande vassoura cujas cerdas iam descendo a rampa. A outra era do Tunga, onde uma projeção mostrava uma imagem dentro de um túnel e aquilo não sai do lugar, tem um continuum. Eu fiquei apaixonada por estes dois trabalhos. Essas obras tiveram um grande impacto simbólico sobre mim. O que era essa bruxa? O que é esse momento contínuo? Uma insônia que não termina. E a outra é uma intervenção urbana em cima de placas de sinalização, do Hervé.

São três tipos de obras diferentes, mas que mostram por onde meu gosto se formou. O resto eu tive que estudar e aprender.

Eu posso dizer que a Bienal foi minha formação em termos de olhar. Lamento não ter participado, antes de ser curadora, por exemplo, como monitor.

UOL: Qual o papel da Bienal hoje em dia?
Lisette Lagnado:
Sempre tive certeza de que uma boa Bienal de São Paulo é aquela que traz as referências internacionais no exato momento em que a produção local está com uma temperatura similar. É a tal da sincronicidade. É uma confrontação entre modos de fazer e de pensar que estimula a formação de um espírito do tempo, expressão que alguns chamam de universalidade, conceito difícil de emplacar hoje.

Mas quando a Bienal tem mais que um título, quando ela tem um projeto e um conceito, seu compromisso muda de figura. Se eu pensasse como um curador pensava nos anos 1980, quando era importante trazer o que havia de mais quente no circuito internacional, eu teria de convidar Maurizio Cattelan, sem sombra de dúvida. Ele é o "hit" do momento, assim como meus antecessores teriam de ter conseguido uma mostra forte de Damien Hirst ou de Matthew Barney.

Fazer isso hoje significa fazer o jogo do mercado. Mas a 24ª Bienal trouxe Olafur Eliason e ninguém prestou atenção. Depois da mostra na Tate Modern de Londres, o Brasil acordou para Olafur. Não é engraçado? Não é um sintoma de um provincianismo?

A 27ª Bienal tem artistas com este peso icônico, como Thomas Hirschhorn e Rirkrit Tiravanija, mas eles só estão na mostra porque têm conexão com o tema da Bienal e não por estarem na onda.

A função da Bienal de São Paulo também tem o papel de fornecer instrumentos, sinalizar os paradigmas da produção contemporânea. Dizer que estamos fora dos centros significa dizer que um europeu faz 12 horas de viagem para poder ver a Bienal de São Paulo. Agora, por que ele viria até aqui se fosse para ver o que ele vê em Berlim, Londres e até Istambul, sem muito esforço?

Eis a dificuldade. A expectativa para o público internacional é outra. Querem ver o novo e o novo para eles não é o mesmo que o novo para artistas brasileiros.

Vamos combinar que meu público é majoritariamente local, certo? Então, para quem fazemos uma Bienal? E por quem somos julgados se a Bienal é boa ou ruim?

Estamos mostrando Ana Mendieta e Gordon Matta-Clark para que os jovens artistas brasileiros possam se reconhecer, de alguma forma, e se inserir numa história da arte. Talvez isto lhes dê estímulo para continuar fazendo o que estão fazendo. Talvez repensem melhor o seu lugar. Talvez gere uma crise. Mas terá valido a pena.

UOL: Para quem é feita a Bienal?
Lisette Lagnado:
Essa pergunta eu pude checar ao longo durante os seminários, para quem eu faço essa Bienal, olhando quem vinha nos seminários, e assim eu pude perceber quem é meu público.

É claro que existe aquele público que é VIP, que vem aqui, fica uma semana e é super blasé, vai embora e vai dizer "ah, essa peça estava na última Bienal de Istambul". Mas eu não trabalho só para estas pessoas que vêm aqui e ficam uma semana.

É claro que a gente evitou isso, todo mundo presente na Bienal tem trabalho novo. Mas, é claro que eu sei, que essas pessoas, que são formadores de opinião internacional, que estarão nas coletivas de imprensa, estarão decidindo, de alguma forma, se eu tenho vida depois desta Bienal.

Neste sentido, os meus co-curadores foram importantes para dar esta temperatura internacional. Porque, por mim, eu faria uma Bienal de que eu sinto falta. Um Bienal que respondesse questões que estão nas mentes, nas cabeças e nos ateliês que eu visito normalmente quando estou mapeando o Brasil, ou quando estou viajando.

Quais são as faltas que eu sinto? Ana Mendieta é uma falta. Eu sinto esta falta porque muita gente tem uma referência em relação a Mendieta, que está na hora de mostrá-la, como está na hora de mostrar Gordon Matta-Clark.

Nos seminários, eu vi poucos artistas, eu não vi "meus" artistas ou os que eu achava que eram meus interlocutores. Não sei se eu sou uma crítica dos anos 80, como deveria ter sido, porque acompanhei o Leonilson, Leda Catunda, Daniel Senise, essa geração.

Dos anos 90, sim, me sinto próxima, por causa do "Antártica Artes", exposição que fiz com a Folha, então me sinto muito próxima de Rivane Neuschwander, Jarbas Lopes, Marepe, Lucia Koch, mas, também, isso não quer dizer que eu tenha me cristalizado nisso.

Essa geração que saiu a partir de 2000, esses eu realmente me sinto muito próxima hoje. E vou dizer uma coisa, são eles que assistem aos seminários. Isso é muito gratificante.

Os seminários acontecem porque eu não queria que as pessoas chegassem e achassem que esta Bienal é só uma exposição ou perguntassem quem são esses artistas. Eles ajudaram a dar a cara desta Bienal e a revelar um processo, e deixar de lado a idéia que uma exposição é uma caixa escura que você só revela no dia da inauguração, que você corta o cordão e acabou.

Então, essa transparência, que poderia funcionar contra mim, foi muito bom para que as pessoas entendessem coisas complicadíssimas como o Marcel Broodthaers, que já tinha vindo numa Bienal, mas as pessoas não sabiam nem como pronunciava seu nome.

Por outro lado, temos o projeto educativo desenvolvido pela Denise Grinspum. Tem a capacitação de professores em sala de aula, em cinco pontos na periferia, temos a capacitação de monitores.

Este projeto (educativo), até a última hora, me deixou muito tensa, porque, ao mesmo tempo em que se deveria prestar mais atenção à educação, não é fácil arrumar parceiros que arquem com os custos disso.

UOL: Quais são suas metas nesta Bienal?
Lisette Lagnado:
Eu não sei se em termos de exposição eu tinha uma meta. Em termos de método, eu tinha. Eu sou bastante disciplinada, bastante metódica, e meus curadores (Adriano Pedrosa, Cristina Freire, Rosa Martinez, José Roca, Jochen Volz) ficaram bastante surpresos nas primeiras reuniões curatoriais, quando eu resolvi fazer reuniões abertas, em que a arquiteta estava presente, assim como a diretora da área educativa.

O diferencial desta Bienal é que houve um processo coletivo com os curadores. Eu não dei um continente para um curador. Eu me recusei a dizer que estes são meus artistas e estes são seus artistas.

Eu queria que a arquiteta Marta Bogéa acompanhasse este processo desde o começo, para que ela pudesse traduzir todas as questões envolvidas na curadoria no espaço tridimensional, o que é completamente inédito. Na medida do possível, a Denise (Grinspum) acompanhou algumas reuniões.

As reuniões funcionavam como fórum. Não pense que essa opção foi fácil. Eram reuniões grandes e penosas. Quando iam se aproximando as datas de cada uma, eu passava mal.

As pessoas presentes iam esmiuçando o projeto da Bienal e eu me vi sendo sabatinada de novo, depois de eu ter ganhado o projeto (através do julgamento de uma banca) e os curadores perguntavam: "Por que Acre?".

Oras, eu não sou uma pessoa que fala "porque Acre, porque eu sou curadora-geral", jamais. "Por que não Manaus?", as pessoas me perguntavam. Ia me dando aquele frio na barriga. Como eu nunca usei a autoridade do cargo, eu estava lá defendendo meu projeto, e fazendo com que alguma alma pudesse dizer "eu entendi o que a Lisette disse", sem que nunca tivesse ido para o Acre.

UOL: O que mudou do projeto original?
Lisette Lagnado:
Ensinaram-me que uma Bienal não poderia ter uma quantidade de blocos que eu tinha imaginado, que eram sete -que isso é uma coisa confusa para o público.

O público quer saber o que tem no primeiro, no segundo e no terceiro pavimento. Assim, de alguma forma, a gente fica preso a uma estrutura física e a um discurso narrativo. As pessoas querem, sei lá, no máximo dois (blocos).

Então, a grande mudança, é que dos sete blocos a gente passou para dois grandes eixos de reflexão que são os Projetos Construtivos e os Programas para a Vida, que são expressões do Hélio Oiticica.

E o que mudou também é que o sétimo bloco, que era sobre cinema, hoje é a Quinzena de Filmes, que não é um bloco a parte: ela é tanto Projeto Construtivo como Programa para Vida.

UOL: Poderia explicar a relação desta Bienal e Hélio Oiticica?
Lisette Lagnado:
Eu fiz uma espécie de exercício especulativo, a partir de uma constatação quando eu defendi o doutorado, que na verdade as pessoas criavam cada vez mais obras, que não eram verdadeiramente obras, mas dispositivos para o outro poder participar.

A gente tem que tomar muito cuidado com a demagogia que certos projetos têm com a interatividade. Não declino a possibilidade da relação entre arte e tecnologia, por outro lado. Tem uma coisa bastante rústica, que é o Parangolé, que é muito básica, que é trabalhar com o que temos na mão, que são os nossos instrumentos, na adversidade em que vivemos, nas condições que nós temos.

UOL: E sobre a relação entre Roland Barthes e a Bienal?
Lisette Lagnado:
Ela se deu por acaso, é uma apropriação livre minha, no pré-projeto era o bloco Sem Fronteiras, um título medonho. Durante muito tempo, nós ficamos discutindo qual seria o título da Bienal. Eu tinha acabado de ler os seminários do Barthes e a grande ironia era que eu tinha feito um pré-projeto para um museu, e se chamava "Como Viver Junto" e não passou no conselho, aí eu achava que era um título que não funcionava.

Eu, muito timidamente, numa destas reuniões, cheguei com o livro e expliquei quem era o Barthes, e qual foi minha surpresa quando todo mundo adorou e falou que os Projetos Construtivos e os Programas para Vida representam a idéia de "Como Viver Junto".

Aí, eu que fiquei com a responsabilidade de não diluir o Barthes e de não fazer uma instrumentalização dele, porque você não usa um título de um autor impunemente. Para mim, que venho um pouco da academia, eu tinha um pudor. Os meus co-curadores amaram, foi aclamado, eu voltei para casa com uma dor de barriga e pensando... Barthes e Hélio é como colocar água e azeite juntos.

Mas, no final, as reflexões de Barthes me ajudaram muito, as pessoas leram e cada uma encontrou um nicho. "Delicadeza", que é um dos verbetes, foi importante para algumas pessoas na sua busca curatorial; para mim foi "Religião". Cada curador escolheu um verbete e isso acabou ajudando nas escolhas de cada um, de algum modo.

UOL: "Como Viver Junto" não é um lema para além da arte?
Lisette Lagnado:
Eu acho que a gente, antes de tudo, teria que ser mais generoso, e isso não quer dizer ser menos criterioso, com a definição de artista. Hoje eu o chamaria, assim como o Hélio chamava, de criador.

Veja como as coisas são. A Documenta de Kassel chamou o Ferran Adrià, um chef de cozinha catalão, para a próxima exposição. Ele é um criador. Nesta direção, eu trabalho com a noção de artista como um trabalhador criativo ou artista construtor, como pensava Oiticica.

É arte? Não sei. Para os puristas, talvez não seja, mas eu sou do partido de que a arte deve transformar o mundo. Isto passa pelos criadores. Eu acho que, indo por aí, o arquiteto é, o artista é "criador". Pessoas que trabalham em coletividade, sobre a coletividade.

Por exemplo, a Paula Trope tem uma dimensão minúscula dentro do mundo globalizado, mas na área em que ela atua, com os meninos do Morrinho, é uma célula ativa de uma transformação de consciência daquelas pessoas.

Os nomes foram surgindo de uma maneira muito natural, eu não fiz esforço, eu não inventei estes artistas, eles existem há décadas. Qual o projeto de vida da Paula Trope? São os meninos, que hoje têm o dobro do tamanho dela.

É isso o que eu acho. Não sei se é ativismo social, eu também não tenho simpatia por esta nomenclatura. Eu tenho simpatia por micropolíticas de resistências, porque acho que é a única coisa que a gente pode fazer. Depois de tudo o que aconteceu politicamente neste país recentemente, acho que agora sabemos que só se pode atuar em nível microcelular.

UOL: No seu projeto, o Acre é uma metáfora?
Lisette Lagnado:
Eu discuti muito com José Roca, que abraçou esta causa, que Acre não é uma metáfora. Falei para ele: vai para o Acre e veja, metáfora seria uma transposição de linguagem, mas conflitos de território são reais. Você vai para Israel, para os territórios ocupados, é real, é vida mesmo, é realidade.

Eu não quero conduzir a leitura que vai se dar do Acre. A Marjetica Potrc está montando a obra dela e eu não sei se ela pegou como uma metáfora ou não, tanto faz. A minha vivência do Acre era justamente a de uma brasileira não nascida aqui, (tentando) entender esta história de anexação de um território que pertencia a um país vizinho, e todas essas questões de identidade.

É extremamente contemporâneo trazer para Bienal essas questões e outras, como a do desmatamento das florestas, representado pelo trabalho do Hélio Melo, que fala do crescimento da cidade em relação à floresta. Fico muito feliz em ter dado visibilidade internacional para a obra dele.

UOL: Porque não teremos mais as mostras históricas?
Lisette Lagnado:
O convite que recebi do Manoel Pires da Costa pedia para considerar que eu tinha que fazer um novo enfoque e que eu tinha que considerar que a Bienal não tinha mais salas históricas, porque os museus se fortaleceram nos últimos anos.

Hoje grandes mostras históricas estão sendo feitas no Instituto Tomie Ohtake, na Pinacoteca. Era uma função que talvez fosse necessária nos anos 90, hoje ela se torna menos necessária e não é função da Bienal fazer isso.

Os meus artistas mais históricos, eu chamo de históricos contemporâneos para mostrar como eles ainda estão vivos. Eu não acho que você deixa de ser contemporâneo porque você morreu. Leonilson está entre nós, o que eu falo sempre é que a gente tem uma noção de vida e da morte muito física, corporal. Quem está vivo entre nós? O Felix González-Torres continua vivo.

UOL: Porque as representações nacionais não existem no seu projeto?
Lisette Lagnado:
Primeiro, porque para "Como Viver Junto" você não pode estar ali representando um país. Aliás, eu tenho a grande honra de ter ouvido de muitos artistas, que vêm até de países que não estão em guerra, dizer que entraram no projeto porque não estavam representando seu país.

Eu coloquei isso no meu projeto escrito, porque o Hélio Oiticica, quando chegou na mostra do MoMA em 1970, assim como o Cildo Meireles, de uma maneira um pouco diferente, disseram que não estavam lá representando nenhum país, nenhuma nacionalidade e, se não me engano, nenhuma profissão, nenhuma carreira.

Eu não podia trabalhar com isso. Seria paradoxal, eu aceitar a imposição de interesses. Nós sabemos que ao mesmo tempo que as sugestões de artistas (por parte das representações nacionais) podem ser superpertinentes, por outro lado, pode haver um momento político que um país está vivendo. E daí interessa focar num determinado artista porque este artista trabalha com certas questões, e aquele país instrumentaliza a arte internacionalmente para melhorar a sua imagem.

UOL: Como você acha que vai ser a recepção desta Bienal?
Lisette Lagnado:
Como em toda Bienal, você sempre encontra alguma coisa de que você gosta. Aí, tem gente que fala assim: "Ah eu gostei da última Bienal porque tinha uma sala do Luc Tuymans". Eu espero poder contemplar as necessidades da discussão da arte, mas, para isso, as pessoas têm que ter uma mente aberta.

Eu não fiz uma escolha por grandes nomes, como Rirkrit Tiravanija, mas ele está presente. Pois como se faz uma Bienal que se chama "Como Viver Junto" e não chamar o papa desta questão? Podem criticar o projeto dele, mas a presença dele é fundamental.

Agora, o que está para ser criticado é a exposição. Ela vai abrir e ela está aí para ser criticada, visitada, discutida. É sua função pública.

Mas eu dei ferramentas, e não vou aceitar que digam que esta é uma Bienal altamente conceitual, que é uma Bienal difícil. Porque eu fiz todos os seminários para disponibilizar estes conteúdos.

UOL: Qual é a chave para entender esta Bienal?
Lisette Lagnado:
O que eu queria que fosse residual é o processo, é o "como" se faz uma Bienal, e um evento deste porte não pode durar dois meses e meio.

Eu acho difícil para o sucessor inventar uma coisa que volte, por exemplo, a um formato de exposição só exposição.

Eu senti que os debates foram um sucesso, foi uma coisa que agradou, as pessoas se sentiram incluídas no debate, e isso também passa por uma questão de inclusão social, de saber a quem pertence este grau de informação.

Penso que a gente não deve concentrar tudo na data de abertura da Bienal. Por exemplo, o show que a gente vai fazer com o Bonono, vai ser no encerramento. A gente começa com uma reflexão e faz a festa no final.

Todo mundo faz tudo em outubro. Faz abertura, faz tudo ao mesmo tempo, o show acontece, o debate é naquela semana. Nós temos um seminário em novembro. É muito trabalho para que a Bienal não se circunscreva e para que ela não morra depois que abre.

Tem um momento morno depois, e é preciso continuar tornando aquilo ativo, e tem que continuar a fazer sentido. Não são coisas que estão na parede simplesmente.

UOL: Quais são suas apostas de obras que vão causar um grande impacto no público?
Lisette Lagnado:
Tem uma obra no vão da Bienal, do Tomas Saraceno, que trabalha com cidades utópicas, cidades circulares. Ele vai construir uma torre que vai do chão (térreo) até o teto (3º andar). São três bolhas grandes e não tenho medo que isso tenha uma atração de playground, porque é um penetrável, uma bolha transparente. As pessoas vão poder entrar nelas. Ela tem uma presença física absurda. É bom perceber como o Saraceno lidou com a arquitetura do Niemeyer.

Por outro lado, logo na entrada, nós teremos um impacto político muito grande com o trabalho da Jane Alexander sobre o apartheid --é uma construção e dentro estão todas as armas que mataram negros durante os anos em que o apartheid vigorou.

UOL: Como se deu a implantação das obras no espaço?
Lisette Lagnado:
A localização das obras acabou sendo definida a partir do Projeto Construtivo e dos Programas para a Vida. Você entra na Bienal e vê claramente projetos de arquitetura, maquetes relacionadas ao habitat. Mais para frente, temos a questão do comportamento dentro da arquitetura, as questões sociais que surgem, as questões políticas. No terceiro andar, é mais "como viver junto" porque seria a coisa mais "Éden" do Hélio Oiticica.

Como eu não quis trabalhar com categorias, como o Hélio não trabalhava, existem momentos de respiro. Não é ton-sur-ton, eu não trabalhei com afinidades, pelo contrário, quando eu via que havia sobreposições de questões eu tentei afastar os artistas para dar autonomia para eles.

Mas o caminho é sempre contaminado. É Projetos Construtivos na entrada, como construir uma África do Sul... Então, claro, você não pode discutir a construção de uma nação sem falar das pessoas desta nação.

Então está tudo impregnado do comportamento das pessoas. Mas o primeiro piso eu diria que discute mais o habitat, a moradia, a fronteira, a arquitetura; as questões sociais e políticas vão crescendo no segundo andar, até a utopia do terceiro andar, do "como viver junto". E eu te digo: poucos artistas acreditam nisso.